O que acontecerá quando as aulas voltarem?

21/04/2020

Por Lourdes Atié

Começo este artigo pensando sobre um futuro próximo ou distante, que não sabemos quando chegará, mas que um dia chegará. E o que vai acontecer quando voltarmos para as salas de aula? Como estarão os estudantes e como os professores deverão proceder? Não sabemos nem quando e nem como. Nunca vivemos um tempo de tantas incertezas, mas podemos aqui refletir sobre este momento e sonhar com aquilo que acreditamos. Então vamos recuperar sinteticamente o percurso desta inédita experiência.

(Ilustração Bicho Coletivo)

Estamos vivendo uma situação excepcional, que nunca imaginamos que viveríamos um dia. Mesmo acompanhando as notícias internacionais em tempo real, nos achávamos distantes da China e que o coronavírus não chegaria até aqui. Mas não só chegou, como mudou nossa forma de viver e se relacionar. De repente, passamos a viver numa quarentena, em função da necessidade de manter o isolamento social. Isso significou trabalhar em casa, fazer todo serviço doméstico e ficar com os filhos, já que as escolas fecharam também.

 

O abismo entre escolas públicas e privadas

O que vimos em seguida na educação, entre outros aspectos, foi um distanciamento ainda maior na forma de funcionar das escolas da rede pública das escolas da rede privada. Estas, imediatamente, começaram a sobrecarregar seus alunos com excesso de atividades via internet, transformando os professores em máquinas de produção de conteúdo. Sem que estivessem preparados, de repente se viram numa pressão enorme por parte das direções e dos pais dos alunos para que “ocupassem” as crianças e os jovens, em caráter de urgência. Passaram, assim, a ensinar em modo remoto, gerando um esgotamento tanto para os professores como para os estudantes.

Já nas escolas públicas, aconteceu o exato contrário. Embora a rede pública abrigue quase 90% dos estudantes do Brasil, esta imensa maioria é invisível aos olhos do poder público, da mídia e da sociedade em geral. Por aqui, as escolas públicas ganham visibilidade apenas quando alguma desgraça acontece ou quando um professor supera a barreira das tragédias e ganha algum prêmio por desempenho. Então, o caminho escolhido pelos governantes estaduais e municipais foi antecipar as férias, sem se darem conta de que o contato com o conhecimento é fundamental. Não tinham um plano emergencial. Também demoraram a perceber que a maioria dos alunos dependia da alimentação oferecida pelas escolas e férias significava ficar sem se comer. Foi necessário passar muitos dias para perceberem que os estudantes precisam se alimentar e aprender.

Somente agora, diante da total imprevisibilidade do retorno às aulas, que as redes públicas estaduais e municipais estão acordando de que não podem abandonar seus alunos, precisam fazer algo para que crianças e jovens sigam aprendendo e se alimentando. Algumas prefeituras e redes estaduais estão encontrando alguns caminhos para dar conta de tamanho desafio, considerando que a grande maioria dos estudantes não possui internet nem computador em suas casas. Só agora descobriram que a televisão pode ser um veículo educativo.

 

Desigualdades: uma oportunidade para repensarmos a educação

Esta forma de funcionar tão diversa da rede pública em relação à rede privada explicitou a certeza de que, em tempos de coronavírus, vai aumentar a distância entre essas redes, reforçando a desigualdade educativa do Brasil e demonstrando que são justamente os mais vulneráveis os mais prejudicados neste país tão desigual.

Nas escolas privadas, os professores estão esgotados, tentando ensinar à distância. Trabalham muito mais do que antes, utilizando ferramentas que muitos desconheciam e sem saber se o caminho escolhido está correto. Estão mais expostos também. Muitos pais assistem às aulas, fazem as lições para seus filhos e questionam os valores das mensalidades junto à direção dessas escolas.

 

Não vamos sair desta experiência do mesmo modo que entramos. Não basta mudar o calendário escolar. Então, podemos assegurar que não voltaremos àquela normalidade que conhecemos. Vamos entender que é uma oportunidade de mostrarmos quem somos, que lutas defenderemos e que tipo de humanidade pertencemos.

 

Já nas escolas públicas, os professores esperam que os governantes definam como seguir ensinando aos alunos e discutem o perigo da educação à distância, esquecendo que não se trata de política, mas da urgência de chegar a todos os alunos, evitando que os mais vulneráveis continuem sendo os mais prejudicados. 

Estou assinalando este profundo desequilíbrio social para que possamos pensar que estamos vivendo tempos inimagináveis que, embora tragam muitas privações e sofrimento, é também uma oportunidade para revermos a forma como estamos funcionando, para que possamos aproveitar para transformar a escola em algo que corresponda àquilo que sempre sonhamos.

Leia mais - Lourdes Atié: "Como será quando as escolas reabrirem?"

A pandemia do coronavírus abalou nossas certezas, tem gerado caos, exaustão e frustração em relação à escola. Mas também promoveu um tempo de descobertas e conquistas. Muitos professores aprenderam a utilizar ferramentas digitais, na marra! As famílias tiveram que aprender a conviver no espaço privado, se responsabilizando por tudo e se descobrindo também. Estão saindo da coabitação do espaço privado para uma experiência verdadeira de convivência e dando valor ao trabalho que os professores fazem com seus filhos. Os professores da rede pública estão percebendo que algo precisa ser feito pelos seus alunos em caráter de urgência.

Assim, os conflitos e os ganhos vão sendo construídos, vividos se transformando e, em algum momento, com todas as indagações colocadas, as escolas serão abertas e as crianças e os jovens voltarão para suas salas de aula. E o que vai acontecer? O que poderíamos pensar sobre isso?

 

E quando as crianças e jovens voltarem às escolas?

Primeiramente, é bom entender que o mundo está vivendo uma suspensão. Não vamos sair desta experiência do mesmo modo que entramos. Não basta mudar o calendário escolar. Nada sabemos. Então, podemos assegurar que não voltaremos àquela normalidade que conhecemos. O que será, não sabemos. Temos que encarar a incerteza. Vamos entender que é uma oportunidade de mostrarmos quem somos, que lutas defenderemos e que tipo de humanidade pertencemos.

 

É também o momento de cada escola mostrar sua relevância como um espaço insubstituível de aprender e de conviver. Não é um espaço de festas sem sentido. É tempo de acolhimento e escuta.

 

Estamos vendo que o mundo exige mais solidariedade e empatia. Portanto, é urgente uma maior articulação entre as escolas privadas e as escolas públicas. Temos que diminuir a desigualdade educativa. Ninguém pode ficar bem, se todos não estão bem. É preciso criarmos uma rede colaborativa entre as escolas, fora da política partidária e sem o viés da caridade, mas com o compromisso cidadão. Com certeza, os dois lados aprenderão juntos com a experiência.

Não posso prever o futuro. Sabemos que hoje temos mais dúvidas que certezas e, justamente por isso, precisamos refletir sobre o que significa voltar para à escola. Vou colocar aqui algumas questões que venho pensando, não como um caminho a ser seguido como um oráculo pedagógico, mas para fomentar reflexões, ajudando aos educadores que escolham o seu caminho, não por modismos ou orientações de assessorias externas, mas por autonomia construída coletivamente, cuja opção seja para reforçar a identidade de cada escola. Só vale o que for verdadeiro, de quem conhece profundamente sua comunidade escolar.

 

É tempo de mudanças e de calma

É tempo de imprimirmos mudanças que sempre acreditamos, mas que sempre eram adiadas por falta de tempo. A hora é esta! Joguem fora o valor à educação que valoriza o individualismo dos alunos ou o rankings entre as escolas concorrentes. Vamos estudar e criar redes entre escolas para entendermos o que significa ensinar e aprender neste momento e recuperar fundamentalmente o desenvolvimento e os direitos humanos.

É importante também ter claro que não vamos recuperar o ano nos meses restantes, nem sabemos se o ano vai terminar em dezembro ou vai entrar por 2021. Não é mais o calendário que importa. É preciso que cada equipe pedagógica defina o que é relevante ensinar, dentro do tempo que resta para encerrar o tal ano letivo, sem querer acelerar. Ao contrário, é preciso buscar o tempo justo para que todos possam aprender com calma e respeito.

 

A escola acelerada que conhecemos morreu. Há tempos sabemos disso. Conteúdos demais, aprendizagens de menos. Vamos aproveitar este momento para construirmos a escola dos nossos sonhos com nossos alunos e não para eles.

 

E, quando acontecer a hora de os estudantes voltarem para a escola, é também o momento de cada escola mostrar sua relevância como um espaço insubstituível de aprender e de conviver. Não é um espaço de festas sem sentido. Quem faz isso são os buffets de festas. Na volta às aulas, sugiro não transformar a escola em um circo para receber os alunos. Nada de festas, decorações amorosas e coloridas. Não precisamos de festas. Precisamos de alegria. É tempo de acolhimento e escuta.

O momento pede calma. Podemos expressar nossa alegria pelo reencontro sem pirotecnias. Apenas oferecendo um olhar afetuoso que demonstre o quanto cada um é importante e que juntos somos mais fortes. Basta chegar e acolher, com calma, e estar disponível para que cada um dos alunos e colegas de trabalho possam se expressar. É o encontro que importa e não o tempo escolar perdido. Um bom começo de acolhida pode ser pela arte, que une a todos por meio das múltiplas linguagens, sem esquecer do poder libertador da literatura.

 

A escola acelerada morreu

Não sabemos como os alunos chegarão. Que histórias viveram? Como se sentiram? Portanto, vamos baixar a pressão. Não há mágica possível que recupere o tempo passado, por mais que aceleremos. Vamos respeitar a todos. Inclusive, é também uma oportunidade para que o professor deixe de ser apenas um executor de tarefas pré-definidas para se tornar sujeito imprescindível, como um intelectual do conhecimento, que sabe o que significa ensinar a todos.

Então, vamos aceitar que este é um ano atípico. Esqueçam currículos, avaliações, BNCC, conteúdos disciplinares, sobrecarga de estímulos, porque tudo isso ficou secundário diante da experiência que vivemos. Não vamos desperdiçar esta possiblidade de um encontro sensível em nome de regras burocráticas. Vamos defender a construção de uma vida mais fraterna, humana e cuidadosa com todos. Enfim, uma vida com mais sentido para todos.

A escola acelerada que conhecemos morreu. Há tempos sabemos disso. Conteúdos demais, aprendizagens de menos. Vamos aproveitar este momento para construirmos a escola dos nossos sonhos com nossos alunos e não para eles. A escola que acolhe e respeita cada um, que estreita vínculos. Aquela também que coloca o conhecimento a serviço de uma sociedade mais justa e humana, para que todas as crianças e jovens possam desfrutar das mesmas oportunidades. Não podemos deixar escapar esta oportunidade.

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Lourdes Atié é socióloga, consultora de educação e trabalha com formação de professores

 

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