"Loira Suicida", de Darcey Steinke, traz oportunidade de resgatar o brilho do house music

11/05/2021

 

“Conheci muita gente lá: uma feminista que tentava destruir o mito do cânone estético, músicos que insistiam que o house era o blues da década de 1990 e um artista performático que se cobria de sangue animal e declarava que a narrativa havia morrido”, conta a protagonista do romance Loira suicida, de Darcey Steinke, sobre uma das festas underground que ela frequenta.

O enredo do livro se ambienta naquela mesma década, e é centrado em Jesse, uma jovem mulher que abandona a vida confortável e puritana no subúrbio de São Francisco — o berço do movimento pelos direitos LGBTQIA+ — para se aventurar tendo as experiências sexuais mais transgressoras, usando drogas e vivendo a contracultura, em um processo de autodescoberta.

Steinke localiza os leitores em ambientes, situações e na psicologia de seus personagens por meio de referências ao pop, como mostra o trecho em que o house music é mencionado por Jesse, que nos confidencia suas aventuras por meio da narração em primeira pessoa.

O house é um gênero musical derivado do dance eletrônico. Surgiu no início dos anos 1980, em Chicago, e foi trilha sonora das noites de brilho e suor dos LGBTQIA+, negros e latinos que frequentavam as baladas daquela época.

Em sua gênese, o estilo incorporava a energia acelerada da disco e a voz de suas divas ao “futurismo gélido da Eurodisco, que tinha o sintetizador como carro-chefe”, como escreveu o jornalista musical Simon Reynolds na enciclopédia Britannica.

O house se espalhou pelo mundo em dezenas de ramificações, como o acid house, na Grã-Bretanha, em que os jovens complementavam a experiência da música com alucinógenos. Deep house, diva house, french house, future house: infiltrar-se em tantas culturas locais e diferentes entre si fez o gênero se consolidar, nos anos 1990, como um fenômeno cultural mainstream que define aquele período.

No início da década, Madonna, por exemplo, promoveu a apoteose do house com “Vogue”, em referência aos clãs de voguing do underground nova-iorquino. Escrita e produzida com Shep Pettibone, a emblemática música evoca, em sua letra, a experiência libertadora de se acabar em uma pista de dança. Não é difícil imaginar Jesse e seu namorado bissexual, Bell, na balada dançando “Vogue” ou até mesmo “Rescue Me” — outra faixa de house feita por Madonna com Pettibone — enquanto drag queens passam para lá e para cá.

Vossa majestade do pop permaneceu ligada ao gênero pelos anos seguintes, trabalhando com ele no disco Erotica (1992), mais uma vez ao lado de Pettibone, e mais recentemente em “I Don’t Search I Find”, do álbum Madame X (2019), e “Living for Love”, de Rebel Heart (2015).

Madonna, é claro, não é a única diva a ter guardado para si um lugar na mitologia do house. Janet Jackson e Kylie Minogue também aderiram à onda e assim criaram momentos importantes em seus cânones. Em 1991, Sabrina Johnston colocou no mundo a alto-astral “Peace”, pregando a paz mundial com seu vozeirão impressionante e acompanhado dos violinos e do piano que o house herdou da disco. A música se tornou uma espécie de clássico perdido do gênero, embora Johnston até hoje compareça à paradas do orgulho LGBTQIA+ para cantá-la.

Do fim dos anos 1980 em diante, RuPaul, Jellybean, Massive Attack, Pet Shop Boys, Inner City, Malcolm McLaren, Bananarama e CeCe Peniston, entre incontáveis outros artistas, fizeram suas contribuições para o gênero. E, em 1999, o duo recém-encerrado Daft Punk protagonizou uma revolução da música eletrônica ao lançar a icônica “One More Time”, uma faixa de french house. A virada de século aconteceu, mas o house não abandonou as pistas de dança. O gênero é camaleônico, passa por constantes transformações e tem sido revisitado com nostalgia pelo pop contemporâneo.

Hoje, é possível ouvir ecos de “Vogue” em “Babylon”, um dos grandes momentos de Lady Gaga no disco Chromatica (2020), em que a cantora revisita o house music em várias faixas. Bright Light Bright Light concebeu, também em 2020, “This Was My House”, uma faixa que transborda a exuberância do house — e também traz referências à Madonna ao ter nos backing vocals Niki Haris e Donna De Lory, duas cantoras que acompanharam a rainha em turnês e gravações de álbuns por décadas. Em sua letra, “This Was My House” traz um protesto ao massacre que matou e feriu dezenas de LGBTQ+ na boate Pulse, em Orlando, Flórida, em 2016. Bright Light Bright Light lamenta que o local de encontro de uma comunidade perseguida tenha deixado de ser símbolo de alegria.

Se há algo em comum entre a protagonista de Loira Suicida e o house music é a atemporalidade e o fato de ambas serem forças da natureza livres de amarras. Se Jesse fosse uma pessoa de verdade e estivesse viva em 2021, com certeza não lhe faltaria uma trilha sonora.

Confira abaixo uma playlist com alguns clássicos e joias perdidas do house; as faixas passeiam por diferentes variações e épocas do gênero. A seleção não busca cravar em pedra o que seria essencial ao house, mas apresentá-lo a quem não o conhece e dar a você a oportunidade de dançar em casa enquanto estamos confinados durante a pandemia.

 

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Caio Delcolli é jornalista, roteirista e escritor. Além do Blog da Companhia, ele já escreveu para Rolling Stone, Folha de S. Paulo, UOL, Galileu, Elle e HuffPost, entre outras pubicações.

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