O erro de Chico

26/07/2022

 

Vamos deixar uma coisa combinada aqui logo de saída: Chico Buarque é o maior compositor vivo, deste país ou de qualquer outro, da galáxia, do multiverso. Ponto. Disso decorre que seu novo single, “Que tal um samba?”, é genial quase por default. Nele Chico nos convida a virar a página infeliz da nossa história garranchada nos últimos quatro anos fazendo o que o brasileiro faz de melhor: sambar. Depois de “tanta cascata” e “tanta derrota”, é preciso cantar e dançar “pra remediar o estrago” e “pra zerar o jogo”. Mas aqui o mestre se engana: não dá pra zerar o jogo. Não ainda. Perdão, Chico.

Sei que é tentador querer olhar para o futuro e para tempos mais felizes após o pileque homérico que ainda não acabou no Brasil. Só que vem uma ressaca braba por aí. O buraco no qual o país entrou nos últimos anos não será fechado com “um batuque no cais do Valongo” nem com “um banho de sal grosso”. Será preciso, ainda que metaforicamente, enforcar uns generais. Antes de “puxar um samba” como propõe Chico, temos, todos nós, que “desmantelar a força bruta”.

“Que tal um samba?” integra uma safra de canções que vêm pipocando em 2022 e que tentam pintar o Brasil pós-pesadelo. Os anos de barbárie dispararam aquele botão peculiar das artes no qual situações desgraçadas levam a surtos de  criação de beleza pura, ainda que doída. Os temas da reconstrução e resiliência vêm aflorando em músicas de gente tão diversa quanto os brasilienses do Remobília, que em julho lançaram o ótimo “Ponto Final”(cuja faixa “Nosso nome é agora” também faz o convite a “sambar, que é no Carnaval que a gente vence a luta”) e os pernambucanos do Mundo Livre SA, em seu pandêmico “Walking dead folia” (“meu amor sorriu e eu despertei/pensando na próxima eleição”).

Mas, por mais que seja bonito pensar num 2023 com as flores vencendo o canhão e com o brasileiro reconquistando o amor-próprio num governo Lula (alô, turma da terceira via, bora começar a chamar as coisas pelo nome?), esse otimismo nasce grávido da complacência. Assumindo que o golpe militar que Bolsonaro e a cúpula do Exército planejam para os próximos meses fracasse (e é um “se” enorme), a tendência natural é que a turma do deixa-disso entre em operação e um governo de reconstrução nacional chegue ao poder, mais uma vez, anistiando os golpistas. Conciliador arquetípico, Lula talvez esteja neste momento com seus emissários em campo bolando uma aposentadoria dourada para os generais que desembarcarem do projeto 64-bis (que é deles, veja bem, não apenas de Bolsonaro).

Não dá para cometer esse erro de novo; os homens-das-casernas, como os chama Eduardo Viveiros de Castro, precisam sair da política e voltar para sempre ao quartel, e esse trajeto jamais será feito se o bilhete não incluir uma escala na cadeia.

Alguém já disse, ou deveria ter dito, que o Brasil jamais será um país enquanto não implementar a Lei Áurea e não revogar a Lei da Anistia. Se é verdade que a nossa ditadura foi menos sangrenta que a dos nossos vizinhos Argentina e Chile, também é verdadeiro que nós jamais julgamos nem punimos os responsáveis por ela. Abraçamos em vez disso uma anistia proposta pelos próprios assassinos, baseada na falsa premissa de que havia “dois lados” em confronto e, olha como somos magnânimos, estamos anistiando também os “terroristas”. Muita gente boa embarcou nessa história.

Parece natural que exilados Chico e meu saudoso amigo Alfredo Sirkis, que defendia a Lei da Anistia, topassem qualquer negócio na ocasião para retomar a normalidade e a liberdade – e, francamente, assinar Versailles nos termos dos alemães era a única opção na mesa em 1979. Mas fazer cara de paisagem e recusar-se a revisitar o passado após a Constituição de 1988 foi uma opção equivocada da sociedade brasileira. Pior ainda foi uma ex-guerrilheira na Presidência da República convocar uma Comissão da Verdade que expôs os crimes pretéritos das Forças Armadas sem punir ninguém por eles, alimentando o revanchismo daqueles que nunca aceitaram a Constituição e que chamam Brilhante Ustra de herói.

O ressurgimento do golpismo do Exército, paradoxalmente deitado na cama com um presidente que esvazia a razão de ser da corporação (o monopólio do uso legítimo da força) ao distribuir armas a rodo a civis, já foi atribuído a esse carão público que o governo do PT fez os fardados passarem em 2012. É possível que, ao forjar a candidatura de Jair Bolsonaro nos idos de 2014, o Exército tenha feito um movimento preventivo à la Scarlett O’Hara: “Nunca mais passarei vergonha outra vez”. Ao adoçar a boca dos pés-de-bota com 6.000 cargos comissionados, um passe livre na Reforma da Previdência e outras benesses, o mau militar criticado por Ernesto Geisel encantou as serpentes que o criaram.

Os 400 mil brasileiros cujas mortes por Covid poderiam ter sido evitadas caso Jair e seus generais não tivessem sabotado o combate à pandemia providenciaram o empurrão final para o golpismo. Agora o Exército tem a mão amiga suja de sangue. Sócia do presidente no morticínio, a corporação não pode mais deixar o poder porque sabe que terá de responder pelos seus crimes. A pandemia tornou os militares, mais do que nunca, simbiontes do bolsonarismo.

Se o golpe que se arma para 2 de outubro fracassar, se Lula vencer a eleição e assumir em janeiro, será preciso cobrar a conta das Forças Armadas. Punir exemplarmente os generais do círculo bolsonarista, devolver a Defesa ao comando civil e desarmar as fábricas de loucos do Clube Militar e da Escola Superior de Guerra, onde se gestam as teorias da conspiração de 70 anos atrás que fazem a cabeça dos Helenos da vida.

Especialistas vêm defendendo nos últimos tempos uma reforma ampla na educação militar, que atenue a cultura que os isola do restante da sociedade (os “civis” que jamais serão capazes de entender o sacrifício cotidiano que eles, militares, fazem para proteger a boa vida desse pessoal que só quer saber de frequentar saraus e fumar maconha). É um projeto de longo prazo, que mexe com a casta que inventou a expressão “espírito de corpo”. Enquanto isso não acontece, os fardados das motociatas precisarão passar o Natal de 2023 se defendendo na Justiça e amaldiçoando o dia em que escreveram o tuíte do general Villas-Bôas.

Aí sim, caro Chico, poderemos puxar um samba com categoria.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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