Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura
Imagem: Gilberto Viciedo
Entre 2014 e 2015, bancadas políticas se organizaram nas casas legislativas do país para excluir "gênero" e "orientação sexual" dos planos nacionais, estaduais e municipais de educação, silenciando discussões que estavam em curso e dificultando debates sobre desigualdade e violência no ambiente escolar.
No início de maio de 2016, ao tomar posse do governo, Michel Temer extinguiu o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, cujo resultado é a redução de espaços institucionais para debate a respeito dos direitos e das demandas das mulheres.
Ainda em maio de 2016, houve o estupro coletivo de duas jovens, uma no Rio de Janeiro e outra no Piauí. No Rio, foram trinta e três homens que violentaram a adolescente; o vídeo "vazou" (foi compartilhado sem consentimento na internet, o que já constitui crime), ela estava inconsciente e nua. Os comentários que circularam pela internet desconfiavam da versão da vítima e a condenavam. A desconfiança e o julgamento fazem parte do que se tem chamado de "cultura do estupro". O livro Transforming a Rape Culture (1991) define a cultura do estupro como "crenças que encorajam a agressão sexual masculina e auxiliam a violência contra as mulheres". A renomada feminista negra, bell hooks, declara: "Nós vivemos em uma cultura que condena e celebra o estupro". Ao mesmo tempo que a sociedade condena o estupro como um ato violento, investe no corpo feminino como vulnerável, disponível para o sexo e consumível (mesmo que à força). Sobre esse assunto, a Secretaria de Políticas para as Mulheres divulgou, em 2014, a pesquisa "Violência contra a mulher: o jovem está ligado?", que perguntava a jovens de 16 a 24 anos qual era a sua percepção sobre violência. Do total, 96% das entrevistadas/os reconhecem que há machismo no Brasil, 78% das mulheres foram assediadas em locais públicos e 59% dos homens receberam fotos ou vídeos de mulheres desconhecidas nuas.
O que esses episódios possuem em comum com o ambiente escolar? Ano a ano, nas escolas do Brasil, meninas e meninos entram na puberdade. Dizemos que os meninos "esticam" e as meninas "ganham corpo". Elas aprendem desde cedo que é delas a responsabilidade sobre como o seu corpo é tratado no espaço público. Por isso ouvem: "não sente de pernas abertas". E o que elas fazem quando "ganham corpo"? Algumas usam roupas mais largas e amarram o moletom na cintura com o objetivo de se esconder, outras testam maquiagens e experimentam suas formas de expressão. No entanto, independentemente de suas escolhas, essas meninas irão ouvir comentários feitos por seus colegas: "fiu-fiu" nos corredores, insinuações e toques sem consentimento. O estudo acima citado revela como 68% das jovens ouviram uma cantada que considerou desrespeitosa, 44% foram assediadas em festas e 30% foram beijadas à força.
O que as escolas costumam fazer quando essas agressões ocorrem em ambiente escolar? Calam. O emudecimento não reconhece a dor e perpetua a agressão. A "cultura do estupro" é aquela que silencia a agressão sexual sofrida por essas jovens. Curiosamente quando uma criança relata um caso de abuso sexual, ninguém duvida: se ela diz, é verdade. Quando o mesmo ocorre com uma mulher, a reação é desconfiar e julgar. O que isso indica? Atribuímos autoridade diferente às pessoas e negamos a algumas delas a capacidade de denúncia.
Os episódios acima evidenciam esforços feitos para silenciar os espaços que discutem a questão de gênero e revelam o momento bastante delicado do país. Calar o debate gera dor e elimina a capacidade humana de se manifestar.
O livro Diferentes, não desiguais: A questão de gênero na escola faz parte do esforço de denunciar, em alto e bom som, as tentativas de omissão desse problema. Nele, levantamos discussões sobre o surgimento do conceito de "gênero", a trajetória do movimento das mulheres e do movimento LGBT, os marcos legais de garantia de direitos e os processos culturais de transformação da diferença em desigualdade, sempre tomando como pano de fundo a defesa ao direito humano à educação de qualidade.
Diferentes, não desiguais será lançado neste sábado, dia 4 de junho, às 15h na Livraria da Vila (Alameda Lorena, 1731), em São Paulo.

Beatriz Accioly Lins é doutoranda em antropologia na USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos Sociais da Diferença (Numas).
Bernardo Fonseca Machado é doutorando em antropologia social na USP e pesquisador dos núcleos de estudos Etnohistória e Numas.
Michele Escoura é doutoranda em ciências sociais na Unicamp e pesquisadora do Numas e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, na Unicamp.
Beatriz, Bernardo e Michele são autores do livro Diferentes, não desiguais, publicado pelo selo Reviravolta.
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