Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Érico Assis
Ilustração de Rodolphe Töpffer em Mr. Vieux Bois.
O texto que abre Imageria, de Rogério de Campos, valeria pelo livro inteiro. É um texto que trata da primeira história em quadrinhos. Ou das primeiras, das várias histórias em quadrinhos que já se afirmou serem as primeiras. Ou da dificuldade em dizer qual é a primeira história em quadrinhos. E também das brigas que já aconteceram entre quem queria dizer qual é a primeira HQ.
É famosa uma discussão que eclodiu em 1996, quando os EUA resolveram comemorar 100 anos de quadrinhos. Era o centenário daquela tira em que o Yellow Kid conversa com um gramofone usando balões. Um comitê de franceses e belgas se enfureceu e organizou uma exposição tapa-na-cara, celebrando 150 anos da morte de Rodolphe Töpffer, suíço e real inventor dos quadrinhos há (evidentemente) mais de um século e meio antes. Töpffer publicou não só histórias, não só tiras, mas álbuns de quadrinhos (graphic novels?) nos anos 1830, antes de Yellow Kid e seu criador nascerem. Putain esse centenário!
De fato existe algo de diferente no que Töpffer fez há quase duzentos anos. Ajuda que o próprio escreveu, ou teorizou, sobre o que fazia. Ele disse que o texto das histórias — que ficava embaixo dos desenhos, como legendas — não funcionava sem os desenhos, e que os desenhos não funcionavam sem o texto. Além disso, Töpffer defendia que estas “histoires en estampes” (histórias em gravuras) justificavam um traço mais estilizado, mais simples, independente do apuro técnico que o artista pudesse demonstrar em ilustração, pintura, gravura. O desenho mais solto e caricaturesco ajudava o leitor a entender a narrativa — contar a história nas imagens era mais importante que o traço perfeito.
Töpffer fez e teorizou, mas talvez não se possa dizer que inventou. Hokusai já dizia coisas parecidas sobre o traço estilizado em suas aulas nos Hokusai Mangá, de 1814. Publicações japonesas dificilmente teriam influenciado o suíço nem mesmo se tivessem chegado à Europa nessa época, mas Töpffer provavelmente conhecia outras histórias contadas em sequências de imagens, com legendas. Pelo menos A Harlot’s Progress, do inglês William Hogarth, de 1732, que está entre as mais famosas.
Mas há narrativas de quadrinhos mesmo antes disso. Xilogravuras alemãs do século XV contam as vidas de Jesus e de santos em sequências de imagens. Encontram-se balões de fala e onomatopeias em quadros medievais. Se você topar com os livros do Scott McCloud, ele vai lhe dizer que a Tapeçaria de Bayeux (séc. XI) e a Coluna de Trajano (séc. II) são HQs. E aí se vai até as imagens em sequência nas pinturas rupestres — as que contam histórias de caçadas têm 17 mil anos.
Tudo isso está em Imageria. E a grande questão, como Campos logo levanta na abertura, é a definição de HQ. Quem ousa levantar uma Definição Definitiva logo é derrubado por um exemplo novo ou antigo de uma coisa que se diz HQ. (No mundo acadêmico, aliás, esse negócio de “definição” está fora de moda.) O caso é que é complicado dizer qual é a tecnologia bem individualizada — se é que ela existe — por trás dessa forma de contar histórias.
E, além do mais, quase todo mundo que se envolveu e envolve com isso não está nem aí para essas definições: queriam e querem desenhar, contar história, vender jornal, vender revista, vender livro. São poucos os que pararam e param para pensar no que há de diferente, definidor, no que fazem.
Imageria: o nascimento das histórias em quadrinhos reúne exemplos de HQs desde o século XV. Nas mais de 300 páginas de miolo, Rogério de Campos junta dezenas de exemplos de HQs pré-Yellow Kid — o próprio, inclusive — e vai até Reddy — Also Caruso, de 1907, um proto-Calvin & Hobbes. O autor inclusive contesta (e não está sozinho) que Ângelo Agostini tenha sido o primeiro quadrinista no Brasil. É a maior pesquisa iconográfica sobre o tema que já se publicou em livro no país e talvez seja superior a livros estrangeiros com proposta similar, como os de David Kunzle e Thierry Smolderen. Em entrevista recente ao Vitralizado, Campos dá a entender que montou o livro para que se discuta HQ com mais propriedade — sem conhecer a base de tudo, todo comentário e análise fica prejudicado. Então, que comece a discussão. Ou, pelo menos, a discussão mais informada.
Érico Assis é jornalista, tradutor e doutorando. Mora em Florianópolis e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Também escreve em seu site pessoal, A Pilha.
Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/
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