Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Paulo Scott
Não cabe ao autor atribuir à obra literária sua a extensão (a repercussão) da história nela contida; nem de longe isso seria confiável, nem de longe isso seria legítimo. Contudo, sempre resta uma crosta de reminiscências na qual ficam retidas as inquietações que o levaram a escrever a obra. Essas inquietações, eventualmente, podem ser inventariadas.
Neste mês de novembro, completam-se cinco anos do lançamento do romance Habitante irreal, livro que tem como protagonista uma adolescente indígena de catorze anos chamada Maína. Por conta desse transcurso de tempo e também de alguma boa reverberação que se mantém, no Brasil e no exterior, é que me foi ofertado este espaço.
Penso que, entre as inquietações que me levaram a procurar a voz de Maína, duas merecem relevo: 1) a continuidade sem tréguas da dizimação das etnias indígenas em território brasileiro; e 2) a continuidade agravada dos problemas relacionados à disputa pela terra no território brasileiro (contidos nessa perspectiva os avanços do projeto dos donos da terra, dos que tomam a terra, dos donos de latifúndio, dos donos do agronegócio).
Não defendo a acolhida militante dessas realidades pela produção literária brasileira contemporânea, tão somente registro o quanto me inquietam e o quanto não consigo deixá-las de fora do que produzo.
Em falas sobre o livro, no Brasil e no exterior (quando por diversas vezes tive de confirmar que ele é o primeiro romance de não-índio, produzido no país, que deu voz de verdadeira protagonista a uma adolescente indígena), por diversas vezes, não posso deixar de registrar, surgiu a questão: o envolvimento de um estudante de Direito com uma adolescente indígena de catorze anos não é estupro?
Bem, estamos falando de literatura. Quando imaginei o relacionamento entre Maína e o estudante de Direito desencantado com os rumos que seu partido político de esquerda estava tomando, supus que seria mais do que evidente assumi-lo, o estudante de Direito, como o colonizador europeu, o invasor, e Maína como o nativo, o aborígene. O invasor, por mais bem-intencionado que seja, sempre será agressor. Esse foi o movimento sem volta; essa é a tragédia.
No Brasil, os que se colocam – individualmente ou em pequenos grupos – contra os verdadeiros donos do poder são eliminados (a quantidade de lideranças indígenas injustamente criminalizadas ou assassinadas, por exemplo, desde o governo militar, passando por todos os governos eleitos pelo voto direto depois do início da redemocratização, segue sendo preocupante), é assim no interior profundo e é assim nas capitais, sobretudo nas periferias das capitais. A disputa pela terra (incluída nessa disputa a luta pela moradia) é um problema que o brasileiro não quer enxergar, ou não consegue.
Literatura não precisa ser engajada, não acredito em literatura engajada, mas reconheço a pertinência da construção de narrativas que contemplem cenários por meio dos quais sejam colocados os contornos da identidade brasileira, seus muitos atrasos, seus muitos infernos.
Discordo da ideia de que a produção literária de ficção tenha de evitar a História recente, as questões políticas recentes, que não possa cometer leituras, diagnósticos, apostas; não concordo com os que, nas entrelinhas, dizem que literatura não pode se arriscar na direção das questões políticas, das leituras políticas.
Houve quem dissesse: romances que incorporam cenários políticos recentes tendem a se tornar datados, tendem a perder sua importância literária mais rapidamente do que os romances que não dependem tanto desse tipo de conjuntura. Não posso levar afirmações desse tipo a sério.
Se Habitante irreal, passados cinco anos de seu lançamento, ainda tem relevância, ainda incomoda algumas pessoas, muitas pessoas, talvez seja por contemplar, em aposta, perguntas que não queremos ouvir, perguntas relacionadas a atualidades que não queremos esmiuçar. Como já disse, não sou eu quem pode sugerir esse alcance.
Então? O que mais dizer?
Agradeço demais aos que me escrevem para relatar a leitura do romance, aos que o leem e não se manifestam, aos que o leem passionalmente, aos que o leem com indiferença (mas leem até o fim), aos que indicam aos amigos, aos que o indicam publicamente. Leitores, é o que todo escritor espera alcançar. Feliz aniversário, Maína; obrigado por seu inconformismo.
Paulo Scott nasceu em Porto Alegre, em 1966, e mora em Garopaba. É autor dos romances Voláteis (Objetiva) e Habitante irreal (Alfaguara), do volume de contos Ainda orangotangos (Bertrand Brasil) e do livro de poemas A timidez do monstro (Objetiva). Seu romance da coleção Amores Expressos, Ithaca Road, foi lançado em 2013, e em 2014 lançou o livro de poemas Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo.
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