Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Nós diante de uma vitrine de doces mirabolantes. Andares de creme e camadas crocantes e morangos equilibrados em açúcar de confeiteiro. Qualquer coisa com chocolate é sempre o vencedor, mas alguém ouviu falar que o bolo de cenoura com cobertura de cream cheese revolucionou o mundo das papilas gustativas na década de trinta. O começo de nossas vidas como leitores é mais ou menos esse: há tantos mistérios e sensações nos esperando, e todos os livros parecem valer a pena, mesmo que a gente não tenha idade suficiente para penetrar em algumas sutilezas tipo caramelos com sal marinho. A gente faz uma cara de “interessante" e depois corre para mastigar escondido a textura borrachenta de um brigadeiro.
Com o passar do tempo, vamos aprendendo a descartar o que não nos interessa. Aliás, em todos os aspectos da vida. Ainda assim, há aqueles que continuam reverentes incorrigíveis, acreditando que qualquer manifestação literária merece sua atenção e apreço, e que muito provavelmente irão xingá-lo caso você não abrace a literatura sem exceção. São as pessoas que, em eventos literários, vão sugerir que os estudantes passem a ler autores locais nas escolas, não colocando sequer em questão o sentido de ler no Ensino Médio sonetos de amor horrorosos, a cópia da cópia da cópia da cópia made in Arroio dos Ausentes. É como se a Literatura, essa grande arte que nos ilumina e nos torna pessoas melhores, nunca pudesse ser Literatura Ruim. Sim, existe literatura-ruim, como existe literatura-que-não-é-pra-mim, como também existe literatura-que-não-é-pra-mim-nesse-momento-da-vida, etc. Não há nada de mau em aceitar isso. Gosto. Momentos. Livros que não são tão bons assim. Livros que não são tão bons assim mesmo que falem de minorias com a melhor das intenções. Livros com ideias ótimas, mas cujo estilo pode não me agradar, etc.
Às vezes, tenho a impressão de que o que ocorre não é uma reverência cega à Literatura, mas um envolvimento tão profundo na concretude de coisas como sistema literário e fomento à leitura de maneira que os livros em si, a arte, acabam sendo jogados para segundo plano. Assim, nesse mundo invertido, a ideia sugerida no evento literário parece perfeita: autores locais precisam vender suas autopublicações porque afinal se dedicam a um ofício nobre, mas ingrato; jovens devem ser convencidos pelas escolas de que a Literatura irá levá-los a algum lugar, enquanto essa música pop e esses joguinhos de computador não passam de bobagens. Não. Em primeiro lugar, nem todo mundo que decide escrever um livro precisa ser premiado só pelo esforço de fazê-lo. O livro, infelizmente, pode ser ruim. Em segundo lugar, estimular a leitura na escola é maravilhoso, mas é fundamental respeitar o universo do aluno e não transformar a Literatura em doutrinação, porque o próximo passo (eu estava lá) é chamá-los nas entrelinhas de burros e ignorantes caso não escolham aquele caminho tão rico e tão iluminado e tão recompensador.
O que eu quero dizer é que, quando a qualidade literária desaparece como critério e é substituída por coisas tão diversas como compadrio (pequenos sistemas literários que só existem porque uma mão lava a outra), fomento à literatura a qualquer custo (chamando alunos de burros se aquilo não lhes desperta nada), polícia do politicamente correto (que já barrou Lolita em algumas universidades americanas), a Literatura está sendo vergonhosamente desrepeitada. Ainda que as pessoas achem que a amam. Ainda que as pessoas achem que fazem aquilo pelo bem dela.
Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de paredeem 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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