Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Arthur Nestrovski
Dizer que esse pequeno Hamlet, ao contrário de seu avatar, finalmente age para vingar a morte do pai, tramada pela mãe com o tio, não chega a estragar a leitura, depois de tudo o que já se publicou sobre o romance, desde seu lançamento há poucos meses. Narrado em primeira, intrauterina pessoa, Enclausurado é o décimo-sétimo livro de ficção de Ian McEwan e consagra o escritor inglês como mestre de um gênero no qual se cruzam, natural e despretensiosamente, alta literatura e cultura pop.
Desde o primeiríssimo First Love, Last Rites (1975), até os recentes Serena (2012) e A balada de Adam Henry (2014), chegando agora a um ponto de virtuosismo supremo, sua prosa se nutre das referências mais ricas, sem nem por isso almejar às ambições de colegas como J.M. Coetzee e Kazuo Ishiguro, para não falar de Philip Roth.
O livro talvez não seja, afinal, muito mais que um divertimento, mas é um divertimento espetacular, um show de invenção e controle; do ponto de vista da prosa em si, entre outras virtudes, desfila um verdadeiro festival de metáforas, sucedendo-se umas às outras com felicidade mozartiana. Já que estamos nisso, a felicidade de quem escreve fica aparente e se redobra na de quem lê. Em muitos pontos, dá vontade de aplaudir. Vontade de ler em voz alta, porque um prazer desses não dá para guardar sozinho.
E já que falamos de voz, que a voz irreal do narrador seja tão imediata e irresistivelmente aceita, contra tudo o que de resto povoa o contexto realista, só dá prova do artesanato desse autor audacioso o bastante para reescrever, com astúcias de romance policial e argúcias de comédia, nada menos do que a mais famosa tragédia do mais famoso de todos os autores da língua.
O livro tem vários tours-de-force sexuais, esbanjando ânimo num campo habitualmente tão difícil para a literatura. E outros tantos saltos mortais em áreas que vão do vinho à ciência, da poesia ao mercado imobiliário. Como horizonte de fundo, sustenta o mesmo otimismo racionalista já defendido antes por um homem que não cansa de se surpreender com os mil e um avanços da civilização – tratamento dentário sem dor, luz elétrica, contato imediato com quem a gente gosta, e com o melhor da música que o mundo já conheceu etc. etc. --, sem deixar de perceber as ameaças e pior-que-ameaças do presente. No limite, a própria experiência de escrever e ler literatura, reescrevendo e reinventando os séculos de experiência acumulada, pode então ser vista, também, como resposta, atualizada em cada pequeno Hamlet, em cada um de nós.
Arthur Nestrovski é Diretor Artístico da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Violonista e compositor, também escreveu vários livros para crianças, entre eles Histórias de avô e avó, O livro da música, Viagens para lugares que eu nunca fui e Agora eu era (todos publicados pela Companhia das Letrinhas).
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