Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Cerebus, the Aardvark estreou em 1977. Era o gibi inteiramente produzido por um cara de 21 anos, ex-funcionário de uma loja de quadrinhos, chamado Dave Sim. À primeira vista – à segunda e à terceira também – era uma paródia de Conan, o Bárbaro. Conan, publicado pela Marvel, era uma das HQs mais famosas na época.
As tiradas na paródia eram para fã hardcore. Apesar de tudo que fazia com a espada, Conan era meio bronco, né? Elric, outra figura da literatura de fantasia, não era afetado demais? Aquele biquíni de metal da Sonja não deixa tudo ralado?
O protagonista Cerebus é um porco-da-terra ou porco-formigueiro – ou aardvark – antropomorfizado. Ele veste um colete preto, tem uma espada e fala de si na terceira pessoa. Os bastidores da sua criação são simples: a namorada de Sim fazia piada com o animal e escreveu “cerberus” errado.
Sim publicava seu gibi de Kitchener, perto de Toronto, vendendo para lojas de HQ, em convenções e pelo correio. Com o tempo, conseguiu distribuidores. O mercado do quadrinho independente crescia a pequenos passos nos EUA e no Canadá. Cerebus acabou adotado por um público fiel. E aí começa a saga não do porco-da-terra, mas de homem-porco-da-terra Dave Sim.
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Diz a lenda – e o próprio Sim, às vezes – que ele estava viajando no LSD quando decidiu que Cerebus, the Aardvark deveria ter 300 edições e ser a prova de que o quadrinho independente pode dar certo em termos artísticos e comerciais. Independente, para ele, seria não recorrer a uma editora que não a própria e manter controle absoluto sobre a criação. Na época, a imensa maioria das revistas morria depois de meia dúzia de edições. (Ainda morre, aliás.) Lá por 1980, Sim comprometeu-se a fazer Cerebus por mais de vinte anos.
Um dos grandes feitos mercadológicos de Sim, ainda nos anos 1980, foi produzir coletâneas com mais de 500 páginas da série – os fãs chamavam de “Cerebus lista telefônica” – e vender somente pelo correio, sem intermediário algum. Com os fãs fiéis e boca-a-boca, ele vendeu mais de 100 mil exemplares. Se não ficou milionário, chegou perto.
E Cerebus tinha boca-a-boca porque era, de fato, muito boa. Sim insistiu algum tempo nas paródias de Conan e outros gibis de sucesso (Monstro do Pântano, Cavaleiro da Lua), mas aos poucos foi dando lugar a longas tramas sobre política, religião, crítica social. Fã de desenhistas clássicos como Hal Foster e Al Williamson, Sim virou rápido um draughtsman do nível dos mestres. E aí começou a experimentar com a forma: layouts de página nunca vistos, o letreiramento explorado como imagem, uma edição inteira cujas páginas, desgrampeadas, formavam a silhueta de Cerebus. Alan Moore, Frank Miller, Neil Gaiman, Chris Ware e outros beberam em Sim. Na época, até admitiam.
Em 2004, quando Cerebus chegou à 300ª edição, contudo, digamos que ninguém soltou fogos. Dos colegas, Sim não ganhou nem tapinha nas costas.
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Cerebus era uma das lacunas na minha formação. Este ano resolvi encarar as 300. Uma por dia. Parece que ainda dá pra comprar toda a série, versão listas telefônicas, mas eu fui no digital. Você compra o download da série inteira por 100 dólares – com o próprio Dave Sim.
Estou exatamente na metade. Cerebus virou rei, depois papa, aí foi parar na lua. Passei por “Jaka’s Story”, que haviam me dito que é um dos pontos altos, e terminei “Melmoth”, que trata de Oscar Wilde no leito de morte. Nestas últimas, Cerebus ficou meio de fundo mas há alguns paralelos entre a trama principal e a vida do aardvark.
Aí pela edição 60, Sim contratou Gerhard, desenhista que ficou responsável pelos cenários. Enquanto o assistente ficava em minúcias de arquitetura e decoração de palácios, igrejas e tavernas, Sim tinha tempo para desenvolver ainda mais as figuras, expressões, layouts, letras. A sincronia dos dois, com Sim no comando, é perfeita.
Mas o grande personagem de Cerebus é, inevitavelmente, o próprio Sim. Fora a autoria da HQ em si, ele respondia a seção de cartas – umas 10 páginas por edição – e escrevia uma página introdutória de cada HQ, a “mensagem do presidente”, com informes aos fãs, comentários de bastidores e, com frequência, diatribes sobre o que ele estivesse a fim.
Um dos pontos de virada na carreira do autor é um desses textos que saíam na HQ, no qual ele trata de homens e mulheres. Mulheres, na visão de Sim, são seres “vácuo” que se aproveitam dos homens “luz”. Além disso, são naturalmente inferiores aos homens. E o feminismo só prejudica a sociedade ocidental.
E caso alguém queira discutir isso com ele, não vai ter muito sucesso. Sim não aparece muito em público, dá pouquíssimas entrevistas e, quando fala, corta o assunto quando estiver a fim.
Não se sabe quanto as declarações de Sim afetaram as vendas de Cerebus. Mas, de autor considerado guru do independentes e obra que aparecia colada a Watchmen Sandman, Maus e Love & Rockets, Sim e Cerebus sumiram da crítica. E continuam praticamente desaparecidos.
Ainda não cheguei nesse ponto de virada. E apesar de já ter visto uma e outra entrevista por aí – bem como a fortuna crítica da meia dúzia de fãs que se manteve fiel – estou tentando segurar tudo isso para depois. Há quem diga que os últimos 50 números, pelo menos, são só para cumprir a promessa.
O que tenho, por enquanto, é que Cerebus realmente tem seus pontos altos revolucionários e merece menção na história da HQ. Lendo e conhecendo, fica ainda mais expressivo notar como ela foi apagada. Por mais que a história da arte esteja cheia de babacas de destaque, renome e lugar garantido nos livros de história, nos quadrinhos eles não se dão bem.
Mas sigo na minha leitura. Tem 150 edições pela frente.
Érico Assis é jornalista, tradutor e doutorando. Mora em Florianópolis e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Também escreve em seu site pessoal, A Pilha.
Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/
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