Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Há pouco tempo passei três dias numa terra encantada, onde seres fantásticos e humanos convivem em perfeita harmonia, há sempre música no ar, e ruas e calçadas são impecavelmente limpas e totalmente seguras.
Como sempre, foi uma experiência bizarra, repleta de contradições. Eu estava temporariamente instalada no coração do império Disney, entre os hemisférios dos parques – a dupla Disneylândia e California Adventure de um lado da avenida Katella e, no outro hemisfério, do outro lado da rua, o Centro de Convenções da cidadede Anaheim, ao sul de Los Angeles. Como faz a cada dois anos, a Disney estava reunindo seus fãs e seus parceiros de negócios numa grande convenção/feira, a D23 Expo.
Escrevi sobre o factual desses três dias em outros lugares, mas ainda não consegui processar por completo a experiência interior de me ver, mais uma vez, trancada na bolha Disney, com todas as suas ramificações de conforto e desconforto.
O conforto é fácil de localizar – o conforto, aliás, é o mais perfeito produto da engenharia Disney. Começa na familiaridade – logo na primeira década de existência do que viria a ser a Walt Disney Company, a prioridade era criar uma mitologia compartilhável, acessível, capaz de ser consumida pelas crianças e seus pais, garantia da perpetuação do fascínio e do consumo. Quando eu vi Bambi – o primeiro filme da minha vida – meus pais já eram fãs de Branca de Neve e os Sete Anões, Dumbo e Fantasia. O vírus passou adiante, e em breve estávamos todos vendo juntos A Dama e o Vagabundo e A Guerra dos Dálmatas, assim como meu filho veria Bernardo e Bianca, O Cão e a Raposa e Tron, e as filhas dele se tornariam fãs absolutas de Rapunzel, Frozen e Moana.
Andando pela gigantesca área de exposição das muitas franquias Disney – guarda-chuvas, malas, balas, vestidos de noiva, mini-robôs, sandálias Havaianas – cruzo com famílias inteiras vestidas a caráter, Brancas de Neve e Belles, Jack Sparrows e Mickeys, gerações reunidas por esse mesmo conforto. Paro para conversar com um desses grupos: uma senhora de certa idade vestida de Margarida, um casal como Mickey e Minnie, uma quase adolescente como Belle de A Bela e a Fera. Conversamos. Eles vêm a todos os eventos do fã clube oficial da Disney, a família toda num trailer, viajando do Arizona até Anaheim. "Por quê?", pergunto. “Porque é uma coisa que nos deixa muito felizes”, diz Minnie. “O mundo está tão difícil e feio, aqui neste ambiente Disney nós podemos ser uma família feliz”, completa Margarida, com um sorriso, gesticulando para o ambiente ao seu redor.
Existe um aspecto bonito desse lado-conforto nos parques. Às vezes esqueço que Papai Walt bandeou-se do partido Democrata para o Republicano em 1940, entregou vários de seus mais dedicados animadores ao Comitê de Atividades Anti-Americanas do Congresso e achava que todo sindicato de classe era uma célula comunista. Quietamente, os parques da Disney – e meço principalmente pela Disneylândia, minha vizinha – tornaram-se um oásis de inclusividade. E não é só porque se vê gente de todas as cores, culturas, trajes e idiomas circulando com a mesma alegria entre o Castelo da Bela Adormecida e ToonTown – é também pelos casais LGBTQ passeando de mãos dadas, os grupos uniformizados de bikers e punks e metaleiros nas filas, tomando sorvete, fazendo selfies.
O motorista do Uber que me leva para a Disneylândia mora a três quadras do parque e, como todos os locais, tem desconto nas entradas. Está indo me levar e, ao mesmo tempo, encontrar-se com os dois filhos que largou lá de manhã. É viúvo, imigrante, veio de El Salvador e construiu sua vida como operário de obra em Anaheim. “Nós estamos sempre na Disneylândia”, ele me diz. “Aniversários, formaturas, nos fins de semana. É tão limpo, tão tranquilo…” "Mesmo com essas multidões, as filas?", quero saber. “Ah, é tudo tão tranquilo, tão organizado… Eu não me preocupo, sei que os meninos estão bem… Tudo é tão bonito, a gente se esquece dos problemas, das dificuldades… É um hábito, uma tradição de família, eu acho…”
Esse, o conforto – a Disney não cria produtos audiovisuais, cria mundos onde as pessoas podem se refugiar, mitologias que podem ser passadas de geração em geração. Não é à toa que ela adquiriu a Marvel e a LucasFilm, duas outras fábricas de mitologias.
E é aí que começo a ficar desconfortável – com a industrialização da imaginação, o controle obsessivo sobre todas as propriedades artísticas e intelectuais, a liberdade vigiada dos parques.
Sou realista – afinal, cubro esta indústria há três décadas e conheço bem suas engrenagens. A Disney é um líder da indústria e Walt, seu capitão. Há um poder e uma força fenomenais em criar mitos contemporâneos desta amplitude – algo muito parecido com religião, se entendermos religião como um esforço poético para compreender o mistério através de metáforas. É na hora de passar no caixa que o coração aperta.
Ana Maria Bahiana nasceu no Rio de Janeiro e vive em Los Angeles. Jornalista cultural, escreveu sobre cinema e música em publicações como Rolling Stone, Bizz, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, entre outras, e foi correspondente, na Califórnia, das redes Globo e Telecine. É autora de Como ver um filme (Nova Fronteira, 2012), Almanaque dos anos 70 (Ediouro, 2006) e Almanaque 1964 (Companhia das Letras, 2014), entre outros livros. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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