Literatura contra a desmemória política, por be rgb
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Ler um clássico é revistá-lo, mesmo se estivermos lendo pela primeira vez. Esse é um dos princípios de Italo Calvino em seu ensaio Por que ler os clássicos. Por mais irônico e circular que pareça, o ensaio do autor italiano tornou-se um clássico e eu só o (re)li pela primeira vez no início dos anos 2000, quando cursara as primeiras disciplinas do curso de Letras. De lá para cá, já foram tantas leituras de Calvino, e tantas outras leituras que couberam nas belas definições que Calvino faz do que é um clássico, que sempre volto ao ensaio. E neste mês, convido os leitores dessas linhas russófilas a voltar comigo a Por que ler os clássicos, já que ele ilustra tão bem a leitura deste mês: Primeiro amor, de Ivan Turguêniev.
O tema, como o título já demonstra, é o mais clássico entre os temas: o amor. E não qualquer amor, mas aquele que arrebata o jovem Werther de Goethe, o que enlouquece o inexperiente Bentinho machadiano, o que hipnotiza Charlie Brown pela garotinha ruiva. E, já que este é o ano para conhecermos a Rússia através da sua literatura, Turguêniev já nos deixa claro: o amor lá é igual ao de cá.

FOTO: Montse Monmo / Unsplash
O jovem protagonista Vladímir Petróvitch apaixona-se por sua nova vizinha, alguns anos mais velha, a princesa Zinaida. E aqui está um detalhe russo, um dado social: príncipes e princesas russos são nobres como quaisquer outros e não herdeiros do trono. Ser príncipe é um título e não significa ser da linhagem de sucessão real, mas participar da nobreza, mesmo que decadente – como é o caso de Zinaida, moça de uma família já arruinada, apesar do título.
Todavia, nosso herói não é o único que vê a beleza e a alegria de viver da princesinha. Em torno dela, se reúnem os mais diversos tipos russos (hussardo, médico, conde, capitão, poeta…), numa horda de admiradores que ela manipula com sutileza e muita esperteza. E é evidente: Vladímir Petróvitch é de longe o mais ingênuo e o mais sensível às constantes mudanças de humor e aos ardis da donzela.
Isso pode ser percebido porque Tuguêniev, em uma narrativa em primeira pessoa, nos leva à mente do rapaz. Há diante do leitor o relato de um apaixonado, com imagens turvas tingidas de inseguranças pueris que faz com que o leitor (qualquer um de nós que já tenha se apaixonado) não resista à identificação. Nisso reside grande parte do mérito narrativo dessa novela.
Ivan Turguêniev (1818-83), não à toa, está no panteão dos grandes autores do século XIX. À época, pautou grandes debates da intelligentsia russa e foi o primeiro autor russo a ser reconhecido e admirado na Europa, especialmente na França, onde tinha um amigo e leitor: Gustave Flaubert.

FOTO: Mike Kenneally / Unsplash
Primeiro amor foi escrita já na maturidade do autor, em 1860 e, diferentemente de outros memoráveis textos seus, quase não se presta a retratar a complexidade social russa da época. Nem mesmo a questão dos servos, que marcou sua obra-prima Pais e filhos (de 1862), aparece aqui. Mas há, aparentemente, um porquê. Em Primeiro amor, o autor volta à juventude de forma saudosista, lírica. Já não há espaço para o entorno: os acontecimentos internos, o fervor do coração apaixonado, são mais intensos. E era justamente isso que ele buscava naqueles anos. “Primeiro amor é a própria vida e, por isso, é o que me dá prazer em escrever. Não é invenção, é parte da minha experiência”. E, com certeza, permeia a experiência de todos nós, afinal, um clássico, como me ensinou Calvino, assemelha-se a um talismã, algo que nos é precioso, de identificação profunda, quase mágico. E, no espírito da leitura, arrisco: um clássico é também algo próximo do amor.
Raquel Toledo é paulistana, professora e editora. Trabalha também com formação de leitores adolescentes em escolas da capital paulista, afinal acredita que ler Tchekhov resolve 99% dos problemas da humanidade. Fascinada pela Rússia e, principalmente, sua literatura, tornou-se mestre em literatura russa pela Universidade de São Paulo. No ano da Copa na Rússia, escreve mensalmente para o Blog da Companhia sobre literatura russa.
Raquel Toledo é paulistana, professora e editora. Trabalha também com formação de leitores adolescentes em escolas da capital paulista, afinal acredita que ler Tchekhov resolve 99% dos problemas da humanidade. Fascinada pela Rússia e, principalmente, sua literatura, tornou-se mestre em literatura russa pela Universidade de São Paulo. No ano da Copa na Rússia, escreve mensalmente para o Blog da Companhia sobre literatura russa.
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