Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Stephen Greenblatt, historiador nascido em Boston em 1943, é especialista em estudos do Renascimento e atualmente leciona na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Ao contrário de alguns de seus livros anteriores publicados no Brasil, Como Shakespeare se tornou Shakespeare (2011) e A virada (2012), trabalhos aprofundados sobre temas específicos, seu novo projeto, Ascensão e queda de Adão e Eva, traça um panorama amplo acerca da fábula bíblica sobre as origens da humanidade.
Seu percurso começa com os relatos mesopotâmicos registrados há quase quatro mil anos e termina com a visita do autor a um santuário de macacos na África, no epílogo do livro. Entre uma coisa e outra, a “longa e baralhada história” de Adão e Eva, escreve Greenblatt, “de especulação arcaica para dogma, de dogma para verdade literal, de verdade literal para real, de real para mortal, e de mortal para fraudulenta”, termina, finalmente, “em ficção”.
Cada uma dessas etapas representa centenas de anos na progressão histórica do conto de Adão e Eva. Em linhas gerais, tudo começa quando os escribas judeus registram a origem do mundo e da humanidade, uma narrativa marcada por inúmeros traços de histórias anteriores, de outros povos, que as tribos escutavam durante o exílio na Babilônia. Esses traços, contudo, são vigorosamente transformados: “Se o narrador hebreu pretendia abalar crenças mesopotâmicas profundas, teve um êxito brilhante. Virou o mito de origem de cabeça para baixo. O que no Gilgamesh era triunfo, no Gênesis transformou-se em tragédia”. Ou seja, a tragédia da queda e da expulsão do Paraíso.

FOTO: Unsplash
A próxima grande tensão na recepção de Adão e Eva, segundo Greenblatt, está nos escritos dos Pais da Igreja, sábios teólogos atuantes nos primeiros séculos da Era Comum. O principal deles é Santo Agostinho, que dedicou boa parte de seus recursos intelectuais para decifrar as lições do primeiro casal da humanidade. “Agostinho logrou encontrar no ato de Adão, ao comer o fruto proibido, toda uma litania de pecados: orgulho, blasfêmia, fornicação, roubo, avareza e até homicídio. O que parecia ser um nada transformou-se em tudo”, escreve Greenblatt. Os debates seguem Idade Média afora, envolvendo autores como Hugo de São Vítor eTomás de Aquino, entre outros.
O que impressiona Greenblatt na história de Adão e Eva – e ao leitor que o acompanha no percurso – é a maleabilidade da história, tão concisa e econômica em seu registro no Gênesis. Justamente porque diz tão pouco e dá tão poucos detalhes é que a fábula é tão rica em interpretações antagônicas ao longo dos séculos. A narrativa de sua origem faz florescer o melhor e o pior da humanidade, dos afrescos de Michelangelo à intolerância do discurso religioso. Quando Greenblatt chega ao período do Renascimento e das viagens às Américas, por exemplo, comenta como alguns dos que aqui chegaram viram o Novo Mundo como o ponto mais próximo do Paraíso perdido e seus habitantes como os seres mais próximos do casal original.
Com Charles Darwin e suas descobertas, Adão e Eva se consolidam como ficção, cada vez mais distanciados do discurso científico. A potência criativa de sua narrativa, que faz tábula rasa do próprio mundo, segue servindo de estímulo para artistas e pensadores, como foi para o Milton de Paraíso perdido, o Dürer de A queda de homem e muitos outros nomes pelos quais passa Greenblatt em seu livro.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Ed. Modelo de Nuvem, 2011). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
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