Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Descobri na colagem uma forma de pensamento e questiono-me qual será o seu apelo. Talvez seja a possibilidade de recompor materiais condenados ao esquecimento e dar-lhes uma vida nova. Mas será que estou à procura de uma vida nova para os papéis, recortes, fotografias, tecidos ou para mim?
Colar, recortar, rasurar, sublinhar reabre uma segunda infância que eu julgava estar-me vedada. A colagem não é o início de uma coisa nova, mas um regresso. Às vezes é assim. Pressentimos estar perto de uma porta que não sabemos onde vai dar, para um lugar que não sabemos se já tínhamos habitado ou se é o futuro.
William James escreveu que há uma forma de estar doente que consiste em imaginar que podemos nascer duas vezes. Parece querer dizer que, para o bem e para o mal, temos apenas uma entrada na vida, agarrados a um único corpo e espírito. Mas será mesmo? Pelo caminho, pelos corredores, cheiramos portas que ainda não conseguimos ver (muito menos abrir) e que nos conduzem ao lugar onde as nossas recordações — e o presente — nos observam, para usar o título de Tomas Tranströmer.
O apelo da colagem é instaurar uma segunda infância que nada tem a ver com a primeira. Diante de mim, espalhados em cima da mesa, os meus olhos de três anos, a silhueta da minha mãe, o nariz de Arafat, o último tormento de Kadafi, observam-me, recortados de álbuns, folhetos e jornais roubados ao lixo do tempo, desintegrando uma antologia do presente.
Posso ressuscitá-los ou dar-lhes um novo fim — e com isso não renascer com eles, mas noutro lado, em que as leis, as combinações e as normas daqui não vigoram: um homem pode ter um pescoço de girafa; uma mulher pode vestir uma carapaça; uma cereja em calda pode ser uma ilha no meio do Atlântico. Em relação à vida como a conheço, a colagem é o reino divertido da anarquia. Ela instaura a desordem no que parecia a inalterabilidade do passado e sacode a nostalgia enquanto cria um código que baralha tudo.
Corto e recorto com um gozo infantil. À minha volta, o mundo muda e não muda nada. Mas no entretanto faço coisas pouco inocentes: gozo, vocifero, visto-me, perco-me: um dom mais árduo de merecer do que o de achar-me.

Barragem, Djaimilia Pereira de Almeida, 2017.
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