ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto: Djaimilia Pereira de Almeida
O meu gosto por escrever não vem de leituras mas dos balanços da vida dos outros que fazia aos domingos, sentada ao lado do meu avô, enquanto ao nosso lado, silenciosa, a minha avó fumava cigarros.
“Então, Djaimilia, que me tens a dizer?” Julgávamos as escolhas de filhos, netos, celebridades. O curso de uma, a casa de outra, o penteado de outro. Apreciávamos em conjunto a sua ampla prole arbitrária como se eu não fizesse parte dela. Não nos movia a empatia nem o escárnio, mas não nos julgávamos moralmente superiores (talvez ele se julgasse). Preservávamos uma distância. Íamos do estudo e previsão das acções e atitudes das personagens às suas inclinações silenciosas; dos disparates às conquistas e aos erros clamorosos, anotando a teimosia recalcitrante, as capacidades inatas, a tendência para desperdiçarem os seus dons, para negligenciarem os seus desejos: as almas vencedoras, os heróis de cinco anos, as mulheres fatais, os derrotados à nascença, os medalhões, os tristonhos e aqueles cuja alegria o alimentava. De vez em quando, sem se meter, a minha avó tossia, ou deixava cair o isqueiro ao chão.
Estudávamos os erros de cálculo, repetidos a cada ano, gozávamos o gosto de acertar; prevíamos o futuro, como se apostássemos em cavalos. Não esboçávamos a menor intenção de interferir na história. Éramos espectadores. Ele não admitia a sua quota-parte de responsabilidade, nem quando gabava virtudes. O tempo dava-nos sempre razão. O tempo não nos deu razão nenhuma. O que nascera para violoncelista deu em bancário. A que não tinha emenda é hoje feliz. Todos os que estavam para lá da redenção nos trocaram as voltas. Os doentes curaram-se, todos cresceram (mesmo quando esperávamos o contrário). Todos morreremos, conclusão nunca ponderada.
Sentada ao lado daquele homem sábio, entristecia-me por vezes que eu nunca fosse assunto. Ele comentava de passagem a beleza de outras mulheres. Talvez não me ache a mim bonita, pensava eu. “Mas, afinal, o que é a beleza, Djaimilia?” Parecíamos dentro de um diálogo de Platão.
Enquanto se passaram os vinte anos em que nos fizemos adultos, passou-se também o nosso romance de poltrona. Ele não ficou para conhecer o fim da história, como ninguém ficará. Sentada ao seu lado, eu não completava um curso de literatura, mas o meu papel — de pandeireta, de cenário, de coro, de menestrel?— no espectáculo da sua vida, enquanto a minha avó fazia de nós fumadores-passivos.
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em 1982. É autora de Esse cabelo (2015) e de Ajudar a cair (2017). Vive em Lisboa.
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