Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

O último romance de J. M. Coetzee, A vida escolar de Jesus, é uma direta continuação de seu livro anterior, A infância de Jesus, lançado em 2013. Retoma seus personagens principais – David, Inés e Simón – no ponto de suspensão estabelecido na última página de A infância de Jesus: eles estão em fuga, saindo de uma cidade em direção ao campo, para evitar que o menino (David) seja levado a um internato.
Não há ninguém chamado “Jesus” em nenhum dos dois romances, o nome não é sequer mencionado. Esse nome próprio nos títulos é apenas uma das estratégias utilizadas por Coetzee para frustrar as expectativas de seus leitores e, ao mesmo tempo, levar seu universo ficcional a um ponto inédito. Coetzee está com 78 anos e recebeu o Nobel de Literatura quinze anos atrás, em 2003. Desde então, já publicou outros livros que revisam o gênero e a forma romanesca, como Diário de um ano ruim, que absorve não só o registro diarístico, mas também o comentário e o ensaio (em uma seção intitulada “Opiniões fortes”).
Será que David é uma espécie de Jesus enviado à Terra? O mundo de Coetzee em A vida escolar de Jesus parece artificial, construído de forma abstrata com o intuito de remover (ou reduzir ao máximo) paixões e conflitos. Todos falam espanhol, uma língua que parece ser estrangeira para todos – que recebem novos nomes ao chegar ao porto de navio, cancelando o passado e as vidas anteriores (que ressurgem de quando em quando como “sombras de lembranças”).
Simón e Inés cuidam de David, mas não são seus pais e também não são casados. O personagem David continuamente retira forças desse equívoco permanente que é o nome “Jesus” do título: é um menino excepcional em certos quesitos (vê o mundo com um olhar questionador) e também profundamente irritante em outros (por vezes teimoso e intransigente). Em momentos do romance, David parece estar prestes a realizar um milagre. O desejo parece estar ali, habitando a camada subterrânea dos gestos do menino, ainda que ele nunca utilize a palavra “milagre” ou concretize qualquer fenômeno que se qualifique como tal.
Esse é o tema principal desse romance filosófico de Coetzee: o intervalo entre a palavra e a ação, entre dizer e fazer, ou ainda, entre o mundo da linguagem e o mundo do corpo. Repare na imagem da capa: não é à toa que o menino dança, pois David, na nova cidade, não vai para uma escola “normal” e sim para uma escola de dança, para aprender a acessar os números, o cosmos e a experiência da vida e do mundo antes da linguagem organizada (caso isso seja possível).
Ainda que haja uma forte carga filosófica em A vida escolar de Jesus – a situação incerta, as considerações sobre a linguagem que remetem de Platão a Walter Benjamin –, o romance é rico em diálogos e em situações surpreendentes, o que permite o desenvolvimento de uma narrativa dinâmica. É justamente o caráter corriqueiro do drama familiar envolvendo David, Simón e Inés que intensifica o mistério em torno desse contexto elusivo criado por Coetzee, e nisso ele segue os passos de outro mestre seu, Dostoiévski.
Os diálogos e as situações construídas por Coetzee em A vida escolar de Jesus parecem sempre remeter a um ponto além, a uma camada ainda obscura de sentido. “Eu sou um fantasma, Simón?”, pergunta David. “Não, você não é um fantasma, você é real. Você é real e eu sou real. Agora durma”, responde o padriño. O “real” de que falam aqui os personagens é o mundo romanesco e ficcional inventado por Coetzee, revolucionado por seus dois últimos romances. Sua obra agora se lança abertamente como um exercício de experimentação com a linguagem que nos faz questionar a divisão entre o pensamento e o corpo e os métodos de contato entre essas esferas de experiência.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Wilcock, ficção e arquivo (Ed. Papéis Selvagens, 2018). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
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