ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto: Djaimilia Pereira de Almeida
Lembrei-me esta semana, num sonho, dos Perdidos e Achados de uma estação de comboios onde fui várias vezes à procura de objectos perdidos. Não sei se ainda existem. Deixei de frequentar a estação onde ficavam. No sonho, estavam na mesma. Do outro lado de uma porta de vidro fosco, a mesma senhora lia a TV Guia com óculos de leitura.
Olhava-me pelo canto do olho. Levantava o queixo, enfadada antes que eu tivesse aberto a boca. “Perdi as chaves no comboio. Vinha ver se alguém as devolveu.” Ou o guarda-chuva, ou uma mochila, no dia em que a estreei, ou um diário cheio de segredos, como o rótulo da garrafa de vinho Periquita que um rapaz trouxera para a minha festa de anos.
Por um corredor de prateleiras, dois passos à minha frente, a senhora conduzia a visita-guiada. Parecia sempre que apenas se perdiam objectos no Inverno, tal a quantidade de gabardines, casacões, cachecóis — até chapéus. Havia canetas presas com elásticos, etiquetadas, molhos de chaves, bonés, malas de senhora, carteiras e bilhetes de identidade (guardados num envelope), cartas de condução, pares de óculos, bonecas, passaportes, frascos de perfume.
Tudo havia um dia pertencido a alguém, que lamentara ou não dera conta da sua perda a tempo. Mas na sala escura dos Perdidos e Achados a primeira mão de toda aquela tralha parecia ter-se destinado apenas a fazê-la ir dar a uma prateleira esquecida.
Abismava-me que todas as mochilas estivessem cheias, que as malas estivessem feitas, e não vazias como num armazém de confecções; que houvesse canetas e cigarros esquecidos nos bolsos, talvez uma moeda ou um guardanapo de papel amachucado. Era difícil não chegar a pensar que os objectos fazem eles mesmos um caminho e que esse caminho não fora interrompido pelos seus donos esquecidos, mas proporcionado por esse esquecimento ao deixarem-nos para trás. “Encontra-me! Estou aqui!”, parecia gritar-me já não o meu molho de chaves, mas um dos cachecóis cheios de pó, pendurado num bengaleiro a um canto. Como podiam não gritar, ali fechados às escuras, com um dia tão bonito lá fora? No silêncio da sala, as malas conversavam com os estojos; as camisolas contavam histórias às bengalas. Ou talvez não. Talvez se tivessem calado para sempre.
Nunca encontrei nada nos Perdidos e Achados nem sei o que se fazia ao que não era reclamado. Mas regresso àquela sala hoje como se algures lá dentro, muito atrás, tivesse deixado alguma coisa por dizer, por perceber. A sua memória evoca a ideia de outros amontoados de tralha, atrás de outras portas, em departamentos públicos, unidades de comércio, armazéns, tipografias, portos, centrais postais, bibliotecas. E, de repente, a imagem dessas salas cheias do nosso desperdício, trancadas, à medida que o mundo cá fora nos apavora, deixa-me aterrada como se desse conta de que tenho um caroço no corpo. Quanto do nosso silêncio é capaz de comportar o mundo e como suportamos pôr-lhe uma etiqueta sem desatarmos aos berros e sem dizermos adeus a tudo?
De regresso à entrada, cansada de procurar pelas chaves, pousada no balcão ao lado da TV Guia da senhora antipática, uma violeta branca, cantante, era a única coisa teimosamente viva nos Perdidos e Achados do Terminal de Comboios do Rossio.
Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em 1982. É autora de Esse cabelo (2015) e de Ajudar a cair (2017). Vive em Lisboa.
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