ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto: Humberto Brito
Chovia. Estávamos presos no trânsito, à saída de Lisboa. “Deve ter havido um acidente”, comentámos. Seriam sete da tarde. Na faixa da esquerda, um autocarro parara no meio da via. “Será uma avaria?” O primeiro homem cruzou a estrada pela direita, atirando-se para o meio dos carros em passo de corrida. Vinha das obras: boné na cabeça, calças molhadas, botas sujas de tinta, saco a tiracolo. Não demorámos mais do que alguns segundos a entender que o autocarro parara no meio da estrada para o apanhar, embora não houvesse ali perto nenhuma paragem. Não era trânsito. Apenas o caos causado nas coisas por um coágulo.
O homem bateu à porta do autocarro, sorriu, a porta abriu, o jovem motorista acenou-lhe, e ele desapareceu dentro do veículo. O trânsito fluiu.
À minha janela, nestes dias de Outono, um grupo de jardineiros trata de um jardim. O segundo homem, rapaz de pele negra quase azul, distingue-se do resto do grupo, seis ou sete homens e mulheres jovens, com poucos dentes e rosto sofrido. Ouço-o cantar toda a tarde, enquanto corta relva, desenhando diagonais num relvado aqui perto. Canta um espiritual contínuo numa língua desconhecida, de pulmões abertos, uma canção de trabalho. O ruído do cortador de relva serve-lhe de ritmo. Não sei de onde veio e nunca me dás os bons-dias, quando nos cruzamos na rua. O seu canto é ancestral, vêm-lhe do estômago. Pergunto-me onde o aprendeu, quem lho terá ensinado, decerto muito longe daqui, noutro continente. Hoje não é um escravo e talvez nunca tenha sido. Ganha o seu salário, almoça à sombra de um choupo, enrola tabaco antes de pegar ao serviço.
No livro Teatros do tempo (Editorial Caminho, 2001), o poeta português Manuel Gusmão escreveu um verso que me acompanha há muitos anos e me lembra estes dois homens:
“Contra todas as evidências em contrário, a alegria.”
Ninguém ensina; nem se imagina como é árduo deixarmo-nos ir pela mão da alegria. Eu costumava pensar nela como um fantasma que se aborrece de assombrar algumas almas e as abandona. Agora penso que anda no nosso encalço, enquanto a procuramos com uma lupa, atentos a carreiros de formigas: penso nela, hoje, como uma sombra brincalhona, que gosta de nos ver atrapalhados.
Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) é autora de Esse cabelo (2015), Ajudar a cair (2017) e, mais recentemente, Luanda, Lisboa, Paraíso (Companhias das Letras Portugal, 2018; a ser publicado no Brasil em 2019). Vive em Lisboa.
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio
be rgb compartilha sobre seu processo ao longo da tradução de "O tempo das cerejas"
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"