Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

No terceiro post do especial #minhahistoria, uma celebração da Semana da Consciência Negra, convidamos Maíra Souza, uma jovem negra de São Paulo que, ao contar sua própria história, denuncia o racismo estrutural de nossa sociedade. Apesar de ter crescido em um contexto privilegiado, Maíra evidencia como o preconceito racial está entranhado até mesmo em atitudes cotidianas e contesta as expectativas da sociedade diante de uma mulher negra.
Convidamos também todas as nossas leitoras a contarem suas histórias via Twitter, Instagram e Facebook acompanhadas da hashtag #minhahistoria.
Minha história é uma exceção. É geralmente assim que começo quando questionam a minha existência e minha trajetória até aqui. Não digo isso pelo narcisismo que marca meu mapa astral, mas por uma constatação após um rápido olhar pelos espaços em que cresci, ocupei e frequentei.
Minha história começa, em parte, desconhecida, já que a ancestralidade foi negada ao povo preto brasileiro. Ainda na escola (particular e em Pinheiros, cabe dizer), notei que todos meus amigos sabiam de onde vinham seus bisavós e tataravós. Itália, Espanha, Alemanha, Portugal. Mas e os meus? Além da certeza reducionista proporcionada pelos livros de História de que carrego sangue outrora escravo, sei que possuo o DNA de duas mulheres pretas que foram atrás do sim onde só havia não. Uma veio ainda jovem do interior do Ceará tentar a vida em São Paulo nos anos 1970, e outra lacrou na sociedade carioca dos anos 1960 ao se negar a casar, criar duas filhas sozinha e se tornar procuradora do Estado.
Assim como as delas, a minha história é uma eterna tentativa de convencimento. Em incontáveis momentos, justifico o estranhamento e o porquê da minha existência fazer sentido em determinado espaço — ou seja, explico que tudo bem eu estar e pertencer a espaços que, social e historicamente, são negados a pessoas como eu. Talvez seja por isso que minhas vivências e conquistas frequentemente causem espanto, quiçá desconfiança. “Ué, como assim você fala quatro idiomas?”, “Mas me conta, menina, quem pagou pelo seu mestrado na França?”, “O que seus pais fazem? Advogado e contadora do Tribunal de Justiça?! Hmm... bacana”. Quem diria, hein?
Minha história é de adaptação, sobretudo na infância e adolescência, quando adaptar-se a uma maioria branca é uma questão de sobrevivência e não necessariamente uma escolha. Quando se nasce uma criança negra, o cuidado paternal tem outro significado. Temos que cuidar para que nossos filhos não sejam confundidos com algo que não são: marginais, pivetes, trombadinhas, meninos de rua. Por isso, o asseio e a impecabilidade na aparência são imprescindíveis para os nossos pequenos — critérios de que, muitas vezes, as crianças brancas são poupadas em nome da liberdade, do desprendimento e da ludicidade da infância.
Logo, minha história também é de tolerância, seja à dor do couro cabeludo queimado por produtos químicos, ou à invisibilidade nas representações culturais e sociais que perpassam a construção dos nossos conceitos de sucesso, beleza e amor. A lição dada pela minha mãe desde o berço é de que eu tenho que ser a melhor, acima da média, bem preparada. Ainda assim, vira e mexe, quando alguém toca a campainha de casa, perguntam a ela onde está a patroa. Mesmo raciocínio que levava as pessoas a chamarem meu ex-namorado (branco e gringo) de “patrão” quando ele estava dentro do meu carro.
Minha história não é de superação, mas é motivo de orgulho entre os meus. Ainda que meus privilégios e a tonalidade mais clara da minha pele façam da minha existência menos incômoda, vejo que posso ser uma vitrine para que a branquitude consiga ver que nós somos, sim, capazes. Nosso espaço pode e deve ser nas grandes universidades no Brasil e no exterior, nas grandes empresas, no terceiro setor, onde quisermos. Nossa imagem também pode estampar contracapas de livros, e não nos objetificar e hipersexualizar em qualquer veículo. Nosso corpo é um ser de direito, nosso e só nosso, sempre vivo e presente: resistente. Nosso CEP pode ser em Pinheiros, não viemos pela faxina, seja do pó ou da consciência.
Maíra Souza é mestre em Cooperação Internacional e Políticas de Desenvolvimento pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Graduada em Relações Internacionais pela PUC-SP, trabalha na gestão de projetos sociais e políticas públicas na área de desenvolvimento infantil na primeira infância. Publicou o livro Les programmes de transferts sociaux monétaires (Éditions Universitaires Européennes, 2018) após sua experiência no UNICEF Moçambique. Fluente em 4 idiomas, teve atuação profissional no setor privado e órgãos governamentais internacionais. Taurina, ascendente em Peixes e Lua em Leão, é conhecida em São Paulo por elaborar fantasias despojadas de carnaval.
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