ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Foto: Caroline Lima
Nesta quarta parte do especial #minhahistoria, uma celebração da Semana da Consciência Negra, quem escreve é a jornalista e escritora Bianca Santana. A autora de Quando me descobri negra fala justamente sobre esse processo de autodescoberta e sua história até se perceber como mulher negra, de fato.
Convidamos também todas as nossas leitoras a contarem suas histórias via Twitter, Instagram e Facebook acompanhadas da hashtag #minhahistoria.
Tem gente que sabe, desde sempre, que é preta. E tem gente como eu, que sempre soube que não era branca, mas precisou passar pelo morena antes de se descobrir negra. O mito da democracia racial imperou por décadas, não apenas nos discursos políticos, mas também na autoimagem da maior parte de nós. Esse Brasil de todas as raças, onde a cor da pele e a origem não importam, mantém pessoas negras no mesmo ponto da pirâmide social desde sempre. Mulheres e homens pretos e pardos estiveram na base, com sua humanidade negada, durante os quase 400 anos de escravidão. Com a abolição, vieram os brancos, imigrantes pobres, para a base do trabalho assalariado. Em poucas décadas, a maior parte deles tinha ganhado mobilidade social e ascendido na pirâmide. Mas para as pessoas negras, que mudança estrutural aconteceu há 130 anos?
Precisei chegar à universidade para olhar ao redor e perceber que não havia acaso nas condições de vida da minha família e da vizinhança. A avó preta que veio das margens baianas do São Francisco engrossava os fluxos migratórios dos anos 1950. A maior parte da vida como empregada doméstica em São Paulo, sem direitos trabalhistas, a colocava na principal ocupação das mulheres pretas desde a abolição até quase todo o século 20. Minha mãe saiu do emprego doméstico graças à escolarização e pode acessar o ensino superior graças à política de crédito educativo do regime militar. Ali ela rompeu um teto que limitou a maior parte das mulheres negras de sua geração. Foi ali, antes mesmo do meu nascimento, que se desenhou a possibilidade de eu escrever hoje neste blog, ainda tão distante da maior parte de nós.
Mas só compreendi realmente a importância das políticas públicas para a minha mobilidade social em uma roda de mulheres negras, quase todas estudantes da Universidade de São Paulo, que tinham passado por escola técnica gratuita no ensino médio e vivido em conjuntos habitacionais na infância. Se nossas famílias tivessem que pagar aluguel, como a maior parte das famílias negras, teríamos podido nos dedicar à escola? Sem escola gratuita de qualidade, teríamos acessado a universidade pública? Minha amostra de relações indica que não. Nossa mobilidade social foi fruto das políticas de habitação e educação.
Família chefiada por mulher, pai ausente mesmo antes da morte prematura, mais de quatro horas diárias no transporte público, problemas com o cabelo crespo, uma fartura de episódios de discriminação para contar. Tudo isso já estava no plano da consciência quando me engajei na Educafro e compreendi que eu era negra. E que o racismo estruturava a desigualdade brasileira. Com a maternidade me caíram as fichas do gênero. Precisei de mais alguns anos para me aproximar do movimento de mulheres negras e aprofundar a compreensão do lugar que ocupo nesta sociedade e de como não há transformação para a igualdade e a justiça social sem combate ao racismo e ao machismo.
Perceber-me mulher negra, como disse Lélia Gonzalez, foi uma conquista. Mas pouco ela tem de conquista individual. Minha consciência negra é fruto da luta dos movimentos sociais, especialmente do movimento negro e do movimento de mulheres negras. Assim como minha história de vida é decorrência de políticas públicas que permitiram o acesso a direitos. Eu espero dedicá-la a ampliar a consciência entre as nossas e os nossos, para que a vida do povo preto possa ser garantida neste país. Que nossa consciência negra possa interromper o genocídio em curso e se some à luta por trabalho, moradia, saúde, educação e segurança de todas e todos. A consciência negra é coletiva. E o Brasil justo que buscamos passa, necessariamente, por ela.
Bianca Santana é jornalista e autora de Quando me descobri negra (SESI-SP Editora, 2015).
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