Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

A poucos dias do lançamento de Grande sertão: veredas pela Companhia das Letras, convidamos Érico Melo para escrever sobre o estabelecimento de texto, que adota como referência a segunda edição do romance (Livraria José Olympio Editora, 1958) com a rubrica “texto definitivo”. A Companhia das Letras respeitou o critério básico de diminuir ao máximo as diferenças com relação a essa edição, quando se fixou a fisionomia textual do romance.
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Quando fui convidado para participar da nova edição de Grande sertão: veredas pelas editoras responsáveis, Alice Sant'anna e Lucila Lombardi, senti que minha trajetória de estudioso da obra de João Guimarães Rosa, ciclo iniciado há mais de quinze anos, chegava a um de seus momentos capitais.
Minha devoção pelos livros de Guimarães Rosa é de fato antiga e intensa. Hoje entendo que ela deriva primordialmente do fato de ter nascido e crescido no interior de Goiás, onde aprendi a ouvir a música ao mesmo tempo rude e sutil das palavras do sertão. Desde as aulas de graduação em letras na Universidade de São Paulo, passando pelo doutorado e o pós-doutorado, tenho lido e relido os livros de Rosa como textos sagrados da literatura, da cultura e da língua brasileiras. À exceção de Machado de Assis, não há outro escritor patrício cujo legado artístico conserve tanta força e alcance, inclusive no que concerne à autoimagem territorial do Brasil, "este sertão do mundo", no dizer agudo de Ariano Suassuna, outro devoto do culto rosiano.
Assim, no estabelecimento do texto de Grande sertão: veredas, procurei restituir todo o poder encantatório da fala de Riobaldo, parcialmente ofuscado pelas alterações ortográficas da língua portuguesa no Brasil desde 1971. Sob a orientação das editoras, o trabalho adotou como base a segunda edição do romance, de 1958, com "texto definitivo", para permitir uma reavaliação das variantes lexicais posteriores.
Através do cotejo minucioso entre as edições de 1967 — a quinta e última revista por Rosa, que vinha servindo de base às edições recentes — e 1958, auxiliado por dicionários e vocabulários antigos, construí um mapa circunstanciado de todas as variantes para permitir uma análise de caso a caso. Cerca de quinhentas palavras ressaltaram como focos de atenção, resultando em 115 alterações relativas à última edição do romance, lançada por outra casa editorial em 2005, com reimpressões adaptadas segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1990.
Grosso modo, em relação à edição de 1958 admitiram-se apenas atualizações inevitáveis como a queda do acento em "êle", "aquêle", "acêrto" e outras formas diferenciais em desuso, além do trema. Por outro lado, foram restituídos acentos exóticos e/ou expressivos como o circunflexo em "gemêsse" e "doêsse", o subtônico em "umbùzeiro" e "andùzinho" e o agudo em "burití" e "urubú" — formas não previstas pelo Formulário Ortográfico de 1943 nem pelas reformas subsequentes. Do mesmo modo, resgataram-se neologismos como "tôo", "embôlo" e "empipôco" do limbo da não acentuação prescrita pelas regras do Acordo de 1990. Caso à parte é o da obsoleta interjeição "vôte", que voltou a ter acento para ressaltar o fechamento do "o" e evitar confusão com o imperativo eleitoral. A peculiar hifenação rosiana, igualmente sujeita às idiossincrasias de sua invenção linguística, também recebeu atenção especial. Acredito que esses sinais e diacríticos constituam autênticos tesouros criativos e que, como tais, merecem ser preservados no espírito de uma carta que o escritor enviou em 1947 a seu pai, seu Fulô, para pedir-lhe "material sertanejo" aproveitável em futuros livros: "uma expressão, cantiga ou frase, legítima, original, com a força de verdade e autenticidade, que vem da origem, é como uma pedrinha de ouro, com valor enorme".
Essa filosofia textual busca salientar a soberania onisciente de Rosa sobre a língua portuguesa em sua encarnação mais brasileira e moderna, cujo manejo virtuosístico por Riobaldo não raro recorre a operações expressivas no nível gráfico do texto. A dificuldade da empreitada poderia ser comparada à do trabalho de restaurar pinturas antigas, ao mesmo tempo respeitoso da aura insubstituível dos materiais primevos e excitado pela ambição utópica de restituir à obra o vigor original em novos contextos de recepção. O exigente leitorado rosiano logo estará em condições de julgar o resultado final.
Em suma, a ideia central do estabelecimento de texto foi dar ao mágico romance de Rosa um tratamento textual adequado à reafirmação de sua formidável potência linguística, eternizada pelas menores inflexões orais e escritas da travessia riobaldiana.
Publicado originalmente em 1956, Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, revolucionou o cânone brasileiro e segue despertando o interesse de renovadas gerações de leitores. Ao atribuir ao sertão mineiro sua dimensão universal, a obra é um mergulho profundo na alma humana, capaz de retratar o amor, o sofrimento, a força, a violência e a alegria.
Esta nova edição conta com novo estabelecimento de texto, cronologia ilustrada, indicações de leituras e célebres textos publicados sobre o romance, incluindo um breve recorte da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino e escritos de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. e Silviano Santiago. Dispostos cronologicamente, os ensaios procuram dar a ver, ao menos em parte, como se constituiu essa trama de leituras.
A capa do volume é reprodução da adaptação em bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, com nomes dos personagens de Grande sertão: veredas. O projeto gráfico conta ainda com desenhos originais de Poty Lazzarotto, que ilustrou as primeiras edições do livro.
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