Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Como categorizar um livro como Massa e poder, de Elias Canetti? O desejo de definir um gênero que possa contê-lo é grande durante a leitura. Isso acontece porque Canetti usou deliberadamente uma mistura de estilos, campos discursivos e disciplinas para construir sua obra.
Massa e poder foi um trabalho da vida inteira. Em um dos volumes de sua autobiografia (Uma luz em meu ouvido), Canetti marca o início da sua reflexão sobre a massa em 1922, quando participa de uma manifestação de repúdio ao assassinato do então ministro Rathenau. Cinco anos depois, em 1927, Canetti participa de uma revolta de trabalhadores em Viena – essas experiências, em conjunto com uma série de leituras acumuladas ao longo das décadas, forma o substrato primordial de Massa e poder, publicado originalmente em 1960.
O livro de Canetti perdura até hoje porque é híbrido, porque faz a “arte” tocar a “ciência” em uma espécie de romance teórico-filosófico no qual o protagonista é a dúvida. Desde a frase de abertura o trabalho de Canetti se posiciona sob o signo da investigação que se torna obsessão: “não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido”. A frase é também uma mensagem clara para o leitor de Canetti, que muitas vezes se encontra ambivalente diante da complexidade e da vastidão de Massa e poder. O contato com o desconhecido é assustador, mas é também irresistível.
Por ser tão pessoal e, ao mesmo tempo, tão ambicioso – singrando disciplinas como a filosofia, a antropologia, a mitologia e a psiquiatria social –, Massa e poder é também um acerto de contas de Canetti diante de uma série de referências e nomes do passado. Uma palavra possível para definir Canetti é “iracundo”: furioso, colérico, implacável quando se trata de virar e revirar termos, conceitos e ideias. Um de seus principais alvos em Massa e poder é, sem dúvida, Sigmund Freud.
Mas aqui temos um detalhe fundamental: Freud jamais é citado em Massa e poder, e essa ausência é extremamente eloquente. No mesmo volume autobiográfico citado acima, Canetti costura firmemente três eventos: suas experiências com a multidão, o início do seu projeto Massa e poder e o início da leitura da obra de Freud. O deslumbramento veio em conjunto com a resistência: “aprendi a ser um leitor alerta”, escreve Canetti, “estabeleci o verdadeiro início de minha vida espiritual independente. Minha rejeição a Freud veio no começo de meu trabalho no livro que só viria a entregar ao público trinta e cinco anos depois, em 1960”.
Mesmo ausente, Freud está espalhado aqui e ali na tessitura profunda de Massa e poder, especialmente quando Canetti discute psicologia das massas, instinto de preservação e sobrevivência e, ainda mais dramaticamente, nas seções finais sobre a paranoia. No final do livro, Canetti traz como exemplo o jurista Daniel Paul Schreber (1842-1911), autor de Memórias de um doente de nervos, um dos estudos de caso mais famosos de Freud.
As notas de Massa e poder estão salpicadas de nomes que remetem a Freud – Schreber, Bleuler, Kräpelin –, e o próprio método de trabalho de Canetti – ensaístico, digressivo, curioso, audacioso – também remete ao de Freud. Essa ausência, contudo, é indício de uma tensão que pulsa no interior de Massa e poder, um dos tantos fios narrativos subterrâneos que sustentam essa obra-prima.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Wilcock, ficção e arquivo (Ed. Papéis Selvagens, 2018). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém