Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Caetano Veloso
Há artistas que nos abalam com a potência do seu gênio; muitos, na tentativa desesperada de salvar o mundo, dele se afastam, às vezes virando as costas à própria arte, à vida mesmo. Fernanda, artista de gênio, em nenhum dos três itens foge ao centro: no meio do mundo, no meio da arte, no meio da vida. É assim que a vejo, ela mesma pouco a pouco entendendo seu próprio destino. Esse destino que confere ao seu trabalho uma dimensão que transcende a evidente excelência: suas criações são como os romances de Machado, os poemas de Drummond — descobrem (inventam) o sentido do nosso modo de ser; nos fundam, nos filtram, nos projetam. E nos acenam com enormes tarefas. Por isso não me preocupa se a chamam de “primeira dama do teatro brasileiro”. Não há nada da hipocrisia pequeno-burguesa no seu relativo ceticismo frente aos excessos experimentais em arte e vida: simplesmente ela não pode, não deve ser excêntrica, afastar-se demais do centro onde está o seu destino. Ela conheceu a modernização do teatro brasileiro em suas íntimas dificuldades, desde o tempo em que o “ponto” ditava o texto e os atores eram fichados na polícia, até os dias de dialética Arena x TBC. Sabe o que são as duas conquistas reais, não se deslumbra com mudanças de superfície.
Sendo ao mesmo tempo o oposto de uma excêntrica e o contrário de uma medíocre, Fernanda nos comunica responsabilidade. Do jovem ator talentosíssimo que me disse dela “essa veio para ensinar”, ao presidente da República que a queria ministra da Cultura, todos revelam intuir nessa mulher feroz e serena uma vocação de líder moral. É que ela é civilizada e civilizadora. Ela é a encarnação da civilização brasileira possível. Ela é a grande dama do teatro brasileiro. E que sintoma de saúde do teatro no Brasil que seja assim! Sua primeira dama não é uma virtuose acadêmica nem uma burguesa arrogante, tampouco é uma aventureira mistificadora: é uma mulher para quem "os fatos são fatos, os atos são atos e os nomes são nomes”. Se este nunca se tornar um país são e respeitável é porque terá traído Fernanda Montenegro.
Em cena, ela estende um pano sobre a mesa, em silêncio, e tudo está dito sobre a mulher, a elegância, a condição humana e o teatro. De costas para a plateia, sua pele muito branca irradia uma intensa onda sensual, feita de fragilidade e firmeza, coragem e recato.
Caetano Veloso
Junho 90
Texto extraído do prefácio a Fernanda Montenegro em O exercício da paixão, da jornalista Lucia Rito (Rocco, 1990)

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