Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Rafael Zacca

Numa cidadezinha do interior, onde a trama de Sombras de reis barbudos — romance de José J. Veiga publicado em 1972 — se desenrola, os moradores recebem a chegada da Companhia Melhoramentos de Taitara com festejo. Ainda não sabem o que devem esperar.
“De repente os muros, esses muros”, escreve Lucas, o protagonista. Eles são “retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando”.
Mais tarde, os urubus despontam no céu. Primeiro, como uma espécie de mal presságio. Depois, por serem muitos e começarem a pousar nas janelas, passam a ser adotados pelas famílias. Criam uma relação com as casas e com os cidadãos; e é nesse momento que a Companhia Melhoramentos dá o seu jeito de proibi-los.
Por fim, no céu também surgem pessoas voando. E então o hábito de olhar para o alto é vetado pela Companhia Melhoramentos, que a essa altura já conta com fiscais em todo canto e punições severas, mesmo para crianças.
Na primeira cena de Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, surge, no céu, a constelação de escorpião, que prenuncia uma trama em que a morte ocupa um lugar central. O contraste fica por conta da canção amorosa de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa, “Não identificado”, como um OVNI delicado que invade a cena.
Também é no céu que um dos moradores avista pela primeira vez um drone invasor, no formato de um disco voador. Descobrirá, mais tarde, que o drone é apenas um dos dispositivos que fazem parte do jogo perverso de matança executado por um grupo de norte-americanos recém-chegados às terras brasileiras.
Tanto em Bacurau quanto em Sombras de reis barbudos, as forças de vida (interior) e de destruição (que vêm de fora) se confrontam.
No longa-metragem, os moradores precisam encontrar uma forma de resistir coletivamente. Recorrem, para isso, a certo legado que se esconde no museu da cidade de Bacurau, isto é, recorrem à sua própria história.
Hoje, com o país sob forte desmonte mais uma vez na história, é significativo que recorram os moradores à história daqueles que foram soterrados pelas forças de repressão no passado da nossa república.
Em Bacurau, é de cima para baixo (do céu, dos norte-americanos, do prefeito da cidadezinha) que vêm a destruição e a interrupção da vida. A vida, ela mesma, se constrói de dentro para fora (desde o fundo da terra, desde a própria história dos moradores e de seus antepassados, desde os seus túneis e museu).
O romance de Veiga vem à público poucos anos depois do Ato Institucional número 5, que estendeu e radicalizou as práticas de tortura, expurgo e humilhações da ditadura militar. Por isso, é importante lembrar que Sombras de reis barbudos é publicado em meio a uma geração impossibilitada de exercer a sua força.
É dessa geração, fragmentada e acuada pelo desmonte da vida cultural e pelas ameaças de destruição vindas do céu de 1972, que vemos surgir esse romance no qual podemos acompanhar um personagem solitário, ainda em formação — um adolescente.
“Eu precisava achar o rumo sozinho”, escreve Lucas, “ou não achando arcar com as consequências.” Ou ainda, em outro contexto, “uma coisa é a gente pensar no diabo quando está garantido no meio de muitos companheiros, outra é ter de enfrentá-lo sozinho.”
A potência de vida, que irá se contrapor àquela Companhia Melhoramentos, aos seus fiscais e empresários, vem desse protagonista. Ou melhor, desse corpo jovem, que ama e sofre como amam e sofrem os adolescentes — com impetuosidade e hormônios. Essa intensidade se coloca diante das descobertas e aflições de Lucas com o seu corpo, com a chegada do grande mágico Uzk e com as aparições repentinas de criaturas e pessoas que voam. É isso que se contrasta com a própria cidade que se deforma sob as leis arbitrárias da Companhia Melhoramentos.
Como numa espécie de reedição latino-americana de O processo, de Franz Kafka, em que Josef K. acorda certa manhã e se vê repentinamente em meio a um processo sem fim, e uma condenação inespecífica e sem provas o submete a humilhações cada vez maiores. Também a trama de Sombras de reis barbudos acontece sob um véu de acusações sem fundamento, destinadas a interromper tudo aquilo que vive e cresce.
A repressão parece vir do céu, do além. Sombras de reis barbudos, O processo, Bacurau — em todos esses casos, ela aparece como um objeto não identificado. Forma ficcional que floresce diante do clima de terror que se estabelece quando a tirania toma o lugar das leis democráticas em um determinado tempo histórico.
Rafael Zacca é poeta e crítico literário. Doutor em filosofia na PUC-Rio, onde pesquisou a obra de Walter Benjamin, é professor de teoria literária na UFRJ e ministra oficinas de criação literária na UERJ. Autor do livro de poemas A estreita artéria das coisas (Garupa, 2018), entre outros.
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