ERRATA: "Trincheira tropical", de Ruy Castro
Errata no livro "Trincheira tropical", de Ruy Castro, que narra a Segunda Guerra Mundial no Rio

Nora Krug/ Divulgação
Heimat quer dizer “pátria”? No ano passado, o New York Times publicou um artigo só sobre a palavra do alemão. Sim, dá para traduzir como “pátria”, como “nação”, quem sabe como “lar” ou simplesmente “casa”. Mas, com um tiquinho de pedantismo que é comum com termos germânicos, o autor do texto, Jochen Bittner, diz que heimat é mais do que tudo isso.
“Heimat não é só a descrição de um lugar, mas de uma condição de pertença. É o inverso de se sentir estrangeiro. Para a maioria dos alemães, o termo tem o cheiro de biscoitinhos de Natal saindo da cozinha da mamãe. Heimat tem a ver com a paisagem que te marcou, a cultura que te formou, as pessoas que te inspiraram”, ele escreve.
O artigo diz que a palavra tem importância grande na Alemanha atual. Quando foi publicado, em janeiro de 2018, havia rumores de que a nova coalizão no governo do país ia inaugurar um Ministério do Heimat. Poucos dias depois, confirmado: o Ministério do Interior virou Ministério do Interior, da Construção e do (da?) Heimat.
Como a pasta foi entregue a um partido conservador, a União Social Cristã, alguns alemães se preocuparam. Pode-se sentir heimat como aversão ao que vem de fora: os refugiados, a globalização, as outras culturas. Por outro lado, heimat pode ser a mera valorização positiva do que é de dentro sem excluir o de fora. “Dar força a esta versão esclarecida de heimat, contrapondo-se à impressão de que a cultura nativa corre risco, pode até ajudar na integração dos estrangeiros”, diz o artigo.
Nora Krug lançou Heimat no final de 2018 tanto na Alemanha quanto nos EUA. Ela é alemã, de Karlsruhe, do sul conservador, mas mora há mais de metade dos seus 42 anos no Brooklyn, Nova York. Heimat é um projeto que ela desenvolvia há anos, muito antes de o termo entrar em nome de ministério.
A ambiguidade do heimat já estava na cabeça de Krug. A ambiguidade de que ela trata no álbum, porém, é outra, mesmo que próxima. Tem a ver com a culpa que os alemães carregam pela Segunda Guerra Mundial e como esta culpa é merecida e, ao mesmo tempo, desnecessariamente opressora.
Em um trecho no início do livro, ela relata: “Depois da guerra, os Aliados obrigaram os civis das cidades vizinhas a ir aos campos [de concentração] e olhar os cadáveres. ‘Isso foi uma coisa muito inteligente e importante’, minha mãe me disse. Alguns deles foram obrigado a caminhar descalços até lá.”
Krug, cinquenta anos depois da Guerra, visitou os campos de concentração de França, Alemanha e Polônia em excursões com a turma do colégio. “Eu lembro de passar pelos trilhos do trem, pelos alojamentos, pelas cercas elétricas (...) tentando delimitar o escopo das atrocidades cometidas – bem ali – pelo meu próprio povo”.
O projeto alemão de nunca apagar sua mancha na história recente – e de tratá-lo como culpa coletiva – é conhecido. Nas palavras de Krug, vira palpável. Mas, para ela, também tem efeitos maiores, inesperados e adversos.
“Por exemplo: alemães pedem bem menos desculpa que outros, seja por esbarrar numa pessoa na rua ou por coisas mais graves. Pedir desculpa, no alemão, é admitir a culpa. No inglês, a desculpa não implica necessariamente em culpa: pode ser só ‘não queria que isso tivesse acontecido’. Na Alemanha, pedir desculpas tem peso”, ela comenta em entrevista ao Guardian.
“Não acho que devíamos parar de sentir a culpa. Mas existem maneiras de se sentir culpa que nos travam e existem maneiras de lidar com a culpa que são produtivas, úteis. Estas, a gente não aprendeu no colégio”, ela diz na mesma entrevista.
A sensação que se tem no livro de Krug é que você abriu uma gaveta na casa dos avós e passou uma tarde tentando ligar os pontos entre as fotos em preto e branco, as cartas, a carteirinha da associação do bairro, um trabalho de colégio da sua mãe, a medalha de futebol do seu tio. Isso não é metafórico: em Heimat, as fotos, as cartas, os trabalhos de colégio, as carteirinhas, os documentos, as mechas de cabelo e as flores secas estão na página. Parece que vão cair do livro. Heimat é uma gaveta de casa de vó, organizada (mas não muito) pela história que Krug pesquisou sobre sua família e reencenada em quadrinhos.
Embora a história de família seja a grande ilustração do que é a culpa, do que é heimat para Krug, há um tema maior no livro: o que se faz depois do fascismo? Não é algo para se esquecer, para se enterrar numa gaveta. Os alemães têm, sim, que lembrar que foi o tio que lutou no front, que foi o avô que votou nos nazistas, que o país inteiro tem sangue nas mãos. Lembrar para que não se repita. Mas lembrar, também, de uma maneira que não os congele na recriminação, nem que ofusque o que a heimat tem de positivo.
É um aprendizado que o Brasil – e os EUA, as Filipinas, a Hungria e outros – vão ter que adotar daqui a alguns anos.
Krug, de novo, agora em entrevista à Publishers’ Weekly:
“Espero que a nova geração de alemães, incluindo minha filha, não cresçam com a trava da culpa com que eu cresci, porque ela pode degringolar numa sensação inversa: ‘Cansei de sentir culpa’. Quero que eles achem algo mais produtivo, para pensar em como contribuir com a sociedade de hoje.”
E mais uma, para encerrar, em entrevista ao Public Seminar:
“Aprendi, ao trabalhar neste livro, que história não é uma coisa do passado, que não existimos no vácuo histórico, que somos quem somos por conta do que veio antes, que precisamos desconstruir continuamente a história e a memória da história, e continuamente questionar, com minúcia, com incômodo, para não cair nas interpretações estereotipadas, míticas ou finitas da história. E que temos que entender e fazer frente à responsabilidade que temos, cada um, como portador do passado de seu país. É aí, assim espero, que está o significado universal desse meu caderno de memórias.”
Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho e Minha coisa favorita é monstro. http://ericoassis.com.br/
Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/
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