Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Um efeito colateral do cataclismo epidemiológico que se abate sobre a humanidade neste 2020 pode ser o restabelecimento da saúde de uma senhora que anda nas últimas: a verdade. A Covid-19 tem dificultado a vida de governos que têm na mentira seu método de exercer o poder, como os regimes neofascistas das Américas. Se ainda houver civilização no final desta crise, talvez a contagem de patógenos como Donald Trump e Jair Bolsonaro na corrente sanguínea da humanidade despenque a ponto de o mundo receber alta.
Trump foi o primeiro a sentir nos glúteos a dor da injeção de realidade. Depois de passar meses negando o problema, disseminando falsidades sobre o “vírus chinês” e desautorizando seu ministro da Saúde, Tony Fauci, o americano viu o corona mais ou menos literalmente bafejar seu cangote – na pessoa do secretário de Comunicação Social do Brasil, Fábio Wajngarten. Com Seattle transformada em epicentro da pandemia nos EUA e o derretimento das bolsas no dia 12 de março, o presidente foi obrigado a anunciar medidas de guerra contra a doença, inclusive pacotes de socorro econômico e testes maciços para a população. Os americanos de repente se deram conta do ridículo que é não terem um sistema de saúde pública, e isso tende a custar caro aos republicanos. Os vídeos com as mudanças de 180 graus no discurso de Trump e dos âncoras da Fox News sobre a Covid-19 são uma preciosidade que deverá pingar na timeline de muita gente daqui até a eleição de novembro.
No Brasil, o coronavírus catalisou o consenso de que Bolsonaro, nas palavras imorredouras daquele haitiano, “não é mais presidente”. Da convocação e participação na Gadofest do dia 15 ao baile de máscaras da coletiva do dia 18, da negação da pandemia à comitiva infectada, Bolsonaro tentou seguir a cartilha de Trump – e, como atestam as panelas, quebrou a cara. O presidente dobrou a aposta no confronto, no diversionismo e na fraude para lidar com uma questão que afeta diretamente a vida de cada brasileiro, inclusive de seus eleitores. Com a crueldade que caracteriza Paulo Guedes, o governo tentou usar a ameaça à vida de milhões para pressionar o Congresso a desmontar ainda mais o Estado. Cereja do bolo, o bolsolavismo resolveu comprar briga com a China, numa aparente manobra que diversionista que pode ter-lhe custado o apoio de parte do agronegócio.
Os sinais de sepse no organismo bolsonarista não tardaram. A bancada ruralista, principal força do regime no Congresso, se apressou a botar panos quentes com os chineses – a nota do deputado Alceu Moreira só faltou dizer “quem é esse Botolini, nem nunca vi”. A rede Bandeirantes, também ligada ao agro e cliente da firma de Wajngarten, chamou o chanceler Ernesto Araújo pelo que ele é: “idiota”. O tal “mercado”, cujos luminares até anteontem davam bananas para a democracia desde que blábláblá reformas, de repente aprenderam o significado da palavra “público”. Prevejo uma multiplicação de keynesianos enquanto os ditos liberais ficam sem televisão em casa durante a quarentena.
Mas a principal reação tem vindo da base: o eleitorado bolsonarista está acreditando nos médicos, na imprensa e nos cientistas, e não no presidente e na sua récua. As pessoas estão ficando em casa, lavando as mãos e protegendo os idosos. Tias nos grupos de família que dia 15 postavam fotos da Coronafest agora compartilham dicas de saúde pública. Agem com o bom senso que lhes faltou em outubro de 2018. O que aconteceu?
Aconteceu que o coronavírus providencia um soro instantâneo contra os pilares gêmeos do neofascismo, o obscurantismo e a mentira. Regimes como o trumpismo e o bolsonarismo sempre contaram com um delay entre a fake news presidencial do dia e seu impacto. É fácil chamar os cientistas de comunistas e cortar-lhes a verba, porque no dia seguinte não vai cair um meteoro sobre a Terra. É fácil negar o aquecimento global porque, mesmo que as pessoas estejam morrendo pelos eventos extremos, o nexo causal não é imediato. É fácil duvidar das vacinas, porque o filho do antivaxxer estará protegido pela imunidade das outras crianças com quem convive. Como no proverbial dragão de garagem de Carl Sagan, é impossível vencer uma argumentação quando o outro lado não precisa prestar contas ao mundo real.
A pandemia vira esse jogo ao mexer com o valor máximo de qualquer replicador darwinista: a preservação da própria vida. O presidente pode declarar na coletiva (ofegante e de olhos vermelhos) que é “só uma gripezinha”. Mas a esta altura todo mundo conhece alguém infectado ou alguém que conhece alguém infectado ou que foi para a UTI. À medida que o número de mortes aumenta, as pessoas vão tendo mais e mais razões para ouvir os cientistas e não seu “grande timoneiro”. A milícia de desinformação digital pode até reagir, como está reagindo, mas mesmo o gado mais bovino acreditará na sua experiência imediata e não nas loucuras que recebe no zap. É de experiência imediata, afinal, que vivem o terraplanismo e outros negacionismos.
Até mesmo as complacentes plataformas digitais parecem ter encontrado na Covid-19 o limite para seu estímulo tácito à extrema-direita. O Twitter, depois de deixar Eduardo Bolsonaro cometer crimes em série contra a jornalista Patrícia Campos Mello, deletou uma postagem desonesta do sinistro do Meio Ambiente sobre Dráuzio Varella e a seriedade da doença. O Youtube tirou do ar o vídeo do demente da Virgínia que chamava a Covid-19 de “maior manipulação da história”.
Já escrevi aqui que a ciência, frequentemente contraintuitiva e abstrata, perde feio na disputa por corações e mentes do mercadão do mundo digital, onde o controle de qualidade das ideias desaparece e ganha o freguês quem gritar mais alto. A pandemia dá uma chance rara à ciência de gritar mais alto, porque lhe retira a abstração e o mistério. Pessoas estão morrendo hoje. Quem seguiu os conselhos dos especialistas sobreviveu hoje. Por um breve e aterrador momento, Darwin está ao alcance dos olhos de bilhões de pessoas. Para desespero de Bolsonaro e Trump.
É cedo para dizer que o coronavírus produzirá uma gabrielapriolização definitiva do mundo e que os autocratas eleitos modernos sairão desta pandemia para um isolamento domiciliar perpétuo. Nos próximos meses muita água contaminada passará embaixo dessa ponte, e cenários plausíveis para o Brasil vão de Bolsonaro neutralizado a estado de sítio.
O que é possível antever, porém, é que a antiga ordem iluminista ganhou um respirador artificial. As instituições tradicionalmente encarregadas de encontrar e relatar a verdade sobre o mundo, a imprensa e a ciência, podem recuperar terreno e confiança perdidos à medida que salvem vidas e deixem os bots falando sozinhos que o “vírus chinês” não pega nada.
Seria ingenuidade afirmar que a humanidade terá aprendido a lição e emergirá deste período pronta para ouvir e apoiar a ciência na resolução da crise do clima, da desigualdade, da guerra às drogas e de outros problemas que demandem agir com base em evidências. Mas o diminuto vírus parece ter produzido uma rachadura, se temporária, no muro da manipulação digital que sustenta o novo autoritarismo. É hora de pegar as marretas, abri-lo e deixar entrar a luz do sol – que, como sabemos, é o melhor desinfetante.
Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.
Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.
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