Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Foto de Marcos Vilas Boas
Comecei a trabalhar na Brasiliense com vinte anos. Naquela ocasião um rapaz de vinte e sete era o meu ídolo. Se chamava Nirlando Beirão. Redigia como um grande escritor, desviado por acaso para o jornalismo. Sorte para este último, grande azar para a literatura brasileira.
Eu era leitor de seus textos, que iam de Roland Barthes a assuntos mais frugais da cultura. Nirlando escrevia com grande elegância. Naquela época era acompanhado de outros jornalistas que prezavam esse valor. Hoje é mais difícil encontrar qualidade literária e elegância nos jornais. Há menos Nirlandos nas redações, infelizmente.
Passado certo tempo comecei a atuar como editor na Brasiliense e também como responsável pela relação com a imprensa. Foi quando conheci, em carne e osso, o dono daquele texto, e daquela elegância. Se não me engano ele já estava na IstoÉ, que naquela época tinha a melhor seção de cultura do país. Ter um livro resenhado na IstoÉ ou no caderno cultural do Jornal da Tarde era o maior objetivo de qualquer editora. Custou um tempo para que a Veja e os outros jornais melhorassem seus suplementos culturais. Nestes últimos, o que predominava era a coluna social. Na Veja, a cobertura política e internacional.
Conhecer Nirlando Beirão pessoalmente foi uma enorme emoção para aquele garoto recém-egresso da FGV. Mas essa cerimônia logo se quebrou, graças exatamente à gentileza do ídolo. Elegância e modéstia sempre andam juntas, e não poderia ser diferente com um mineiro de raiz, que falava como se estivesse escrevendo.
Durante toda minha vida de editor tentei contar com um livro do Nirlando, incialmente para a coleção que era a menina dos meus olhos na Brasiliense, a Encanto Radical. Ele poderia ter escrito boa parte dos livros daquela série. Mas não quis. Por timidez, modéstia ou preciosismo? Não sei.
Perdemos um pouco o contato por alguns anos até que nosso amigo comum Drauzio Varella me contou que Nirlando, tragicamente acometido de ELA (esclerose lateral amiotrófica), estava escrevendo. Fui encontrá-lo no apartamento em Higienópolis onde ele vivia com sua mulher, Marta Goés, outra grande jornalista e amiga.
Foi um dos reencontros mais emocionantes da minha vida, se não o mais. Daí surgiu o livro Meus começos e meu fim, em que Nirlando relata os efeitos da doença em sua vida, entrelaçados com a história de amor de seus avós.
O processo de edição continuou em alto nível de emoção e foi coroado, quando o livro saiu, com um jantar em minha casa — em que selecionei os melhores vinhos da adega para fazer jus ao momento e ao grande conhecimento enológico do homenageado.
O título do livro foi uma sugestão ousada minha, a partir de uma frase do livro. Achei que seria rejeitada, pela forte sinceridade, que poderia soar dolorida. Nirlando aceitou na hora. Com coragem, a mesma com que enfrentava a maldita e lenta doença.
O ídolo dos meus vinte anos, o amigo sempre gentil, o jornalista elegante e de texto literário morreu ontem, sem sofrer mais. Deixará muitas saudades, muitas mesmo.
Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros.
Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, O ar que me falta, entre outros.
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