Literatura contra a desmemória política, por be rgb
be rgb compartilha sobre seu processo ao longo da tradução de "O tempo das cerejas"

Sempre temo não lembrar, nunca mais lembrar, então é preciso pedir as canetas. Durante 5 km caminho pela cidade e vou tomando emprestadas as canetas, como no poema de Armando Freitas Filho. Desço a Afonso Pena até a Carandaí, paro na banca da esquina. O poema cita um jornaleiro. Na minha banca está uma moça – sua caneta vem na ponta do barbante. Passo o vendedor de loterias, o baleiro, a funcionária do teatro (que está na rua para fumar). O poema menciona um frentista, um chaveiro, a caixa de um supermercado. Falo com o guarda do parque, sua caneta não funciona. O poema também tem sua caneta imprestável. O poema cita um florista, e eu também tenho a minha, com sua esferográfica gasta (treinada em frases de amor). Adiante, as meninas do Habib’s têm uma caneta com lanterna; no poema, quem solta faísca é o amolador. No café Nice me cedem uma bic – no poema ela é de todos. Em qualquer ponto do meu percurso, sempre solicito uma folha de bloco, um guardanapo. No poema, os papéis se desmanchariam: são notas à beira-mar. O poema de Armando se chama “Canetas emprestadas” e está no livro Rol, lançado em 2016. Tem 14 estrofes, escritas com 14 canetas (a correspondência não é exata). Seus versos reconciliam os pés com as mãos, a geometria da escrita com a da caminhada. Um ofício sucede o outro; sua convivência, como a das poetas que o poema evoca, é fraterna: uma caneta deve continuar (e borrar) a história da outra. Enquanto ando, misturo as canetas do poema com as minhas, os personagens dele com os meus – às vezes até pressinto o mar. Há algo, porém, que apenas na minha caminhada posso perceber, e com a última caneta me apresso em registrar: é o modo como elas nos olham – elas, as pessoas que emprestam as canetas. Pois, ao escutarem o seu pedido, sorriem levemente; elevam a cabeça e te olham. Olham com gravidade e doçura, como se te entregassem a chave de uma casa – a casa em que você vai morar.
Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.
Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.
be rgb compartilha sobre seu processo ao longo da tradução de "O tempo das cerejas"
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX