Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Manuscrito de Li Bai. Museu do Palácio, Pequim
Abro um e outro livro de poesia chinesa clássica — são diferentes traduções para o português. Mantenho-me na dinastia Tang, nos poemas de Li Bai (também chamado de Li Po) e Du Fu. Em Li Bai, que recebeu o epíteto de “o imortal exilado na terra”, leio: “a ponta fina dos bambus perfura a névoa azulada/a cascata se agarra ao pico esmeralda”.[i] No poema, o visitante aguarda o retorno de um monge taoista. Adiante, em outro poema, o velho amigo parte em um barco; a quem fica, resta apenas “o grande Rio a correr para os confins do céu”. Passo as páginas, troco de tradução. Vou sublinhando versos esparsos: “meu relho no ar roça as nuvens”, pensa o cavaleiro diante da moça no caminho. “Se estender a mão, posso tocar as estrelas”, diz o poeta no templo da montanha. Em Du Fu, amigo de Li Bai e seu admirador, anoto: “em fila, garças brancas sobem para o azul/Da janela abraço cristas nevadas [...]”— é um poema-paisagem. Em outro, há “prantos se alçando até as nuvens” — é um poema de guerra.
Li Bai e Du Fu, como se sabe, são dois dos maiores poetas chineses. Viveram em um império cosmopolita, generoso com os poetas e a arte, com a música, a pintura, a caligrafia. Tanto em Li Bai, um taoista que dedicou quartetos ao vinho e à lua, quanto em Du Fu, um confucionista atormentado pela guerra (e pelo fracasso nos exames imperiais), vejo repetir-se essa mesma imagem, vertical e ascendente, de movimento em direção ao céu, e o desejo de tocá-lo. Os poemas são concretos, espaciais. Há vinho, vento, há montanhas, rios, guerra. E há sempre a força que atrai o olhar para cima — uma precipitação para as alturas. Picos, torres, estrelas, pinheiros. Barcos rompendo a linha do horizonte. “É preciso alcançar o extremo o cume”, diz um verso famoso de Du Fu, dirigido ao Monte Tai. O corpo se eleva em comunhão com nuvens e pássaros, e ao fim é como se transcendesse em estado de montanha. Tornar-se a grande montanha: “de um só olhar mil picos se apequenem”. [ii]
Há nesses poemas, porém, um movimento reverso. É também vertical, é também recorrente, mas vai do alto a baixo, e assim se opõe ao anterior e o equilibra. É um golpe que converge para a terra, às vezes sutil — um olhar caído, a luz poente, uma persiana que desce. “Águas em voo que se jogam de três mil pés”, escreve Li Bai, em visita ao monte Lu, e pergunta: “não é a Via Látea caindo do alto do céu?”. Um dos poemas mais divulgados de Li Bai, evocando o silêncio e a noite, joga com a posição da cabeça, levantada ou baixa, para opor o céu à lembrança de casa, o instante ao passado, o exílio à memória, e a partir daí liberta uma cadeia de dualidades, de acordo com a direção do olhar. Haroldo de Campos nos dá a seguinte tradução: “cabeça alta/ olho na lua prata//cabeça caída/mente na terra antiga”. A possibilidade de associações parece infinita. Nessa vertigem, vejo um desvio para a escrita: erguer a cabeça, imaginar (partir); abaixá-la, escrever (ficar). A gravidade, aqui, no eixo entre o céu e o chão, é exercida pelo papel, o papel em branco; o gesto decisivo é o do pincel — ereto contra a superfície da folha. “Vou escrever, abaixo meu pincel sobre o papel, meu poema abalará os cinco montes sagrados”[iii], diz Li Bai, invocando seus ancestrais e a figura do grou amarelo — símbolo da imortalidade. Se há uma forma de transcendência pelo céu, também deve haver pela escrita. É o que parece sugerir Du Fu, em um poema melancólico, que indaga sobre o reconhecimento do artista, sobre a permanência do seu nome. “Sou uma gaivota da areia que luta solitária entre o céu e a terra”, escreve. Céu-terra. Eis o espaço da criação, o círculo do poeta.
Desconheço a língua chinesa, seu funcionamento, seu maravilhoso mundo pictográfico. No entanto, posso pressentir a presença desse traço na poesia que leio, essa espécie de ideograma-fantasma que perambula à sombra dos versos. “Subir ao azul, pegar a lua com as mãos!/Com a espada, cortar a água: ela correrá mais bela.” A imagem imediata, no verso de Li Bai, é a da mão que maneja a espada, mas sem dúvida ecoa nela outra manobra, a do calígrafo que levanta o pincel. Tanto o punho do espadachim quanto o do calígrafo devem ser firmes; espada e pincel trabalham como extensão do braço. É pois no gesto do calígrafo, no movimento concreto de suas pinceladas, que reverbera a imagem poética da criação. Cem anos depois de Li Bai, a poeta e calígrafa Yu Xuanji descreverá, com concisão exemplar, a dissolução das nuvens em tinta: “Nuvens nos picos, a primavera no olhar/ Prata entre os dedos, a clara caligrafia”. O papel se torna o espelho do firmamento, seu avesso. Ou, como sugere Li He, outro poeta da era clássica chinesa, citado por François Cheng (e roubado por mim): “o pincel arremata a Criação, o mérito não é todo do Céu”.
*
Em um poema, a sintaxe do silêncio é tão importante quanto a das palavras. Sem um domínio suficiente do silêncio, torna-se difícil escrever poemas. Como uma espécie de matéria escura, certas figuras ou elementos do texto só podem ser percebidos por seus reflexos ou efeitos, e não diretamente por sua presença. São o cosmo invisível do poema. “Ao toque do pincel de bambu/o vento e a chuva galopam/assim que terminas o poema/deuses e demônios choram”. Traduzidos por Haroldo de Campos, esses versos de Du Fu foram escritos em homenagem a Li Bai. Neles se reverencia o talento do poeta, a força do seu ofício. Está lá, explícita, a imagem do pincel, um dos tesouros do calígrafo. Está lá o poema concluído, o vento. Mas está lá também algo que as palavras ocultam, e que tem sua medida, sua radiação violenta e fatal. Está lá, preciosa, a tinta que sai do pincel; está lá ainda, encarnando a matéria do poema, o papel. É o papel, com sua maciez e porosidade, que subjaz no toque do pincel, no prenúncio de seu último toque. É da visão fulgurante do poema sobre o papel que vem a reação dos deuses e dos demônios. Não mencionado, o papel é puro presságio. O papel é a véspera do traço – fragilidade e promessa.
Uma descoberta ou invenção muda não apenas o objeto que se tornará obsoleto; muda todas as relações estabelecidas em torno dele. No século de Li Bai e Du Fu, a China começava a imprimir usando matrizes de madeira. Fazia livros sanfonados, emitia moeda em papel. Mantras e textos sagrados podiam ser distribuídos em larga escala. Em Samarcanda, para além da borda ocidental do império, trabalhadores chineses são aprisionados; transmitem aos árabes a técnica de fabricar o papel. O papel é um pássaro silencioso que, em meio às batalhas, pousa em Bagdá antes de chegar à Europa. “Fogueiras queimam longo tempo aos cumes/ cartas de casa valem uma fortuna”[iv], escreve Du Fu. Tanto ele quanto Li Bai testemunham a agitação das fronteiras. Yu Xuanji apresentará depois outra perspectiva: “Mulheres: a espera junto ao tear/Aos homens, a marcha além da Muralha//As aves no céu; aos peixes, o rio/Ficam as cartas a meio caminho”[v]. Se os poemas tivessem um inconsciente, se houvesse um meio de vasculhá-lo, o papel estaria ali, fresco como casca de árvore, sob a superfície dos versos, nas cartas que não chegam, nos incêndios, contrastando com a seda, tocado pelo vento. No inconsciente desses poemas, a história do papel se cruza com a da literatura.

Fragmento do Sutra Diamante (868 dC)
Detenho-me um pouco no vento, nos múltiplos ventos que aparecem nesses poemas. Vento norte, vento de primavera, de outono. Vento que agita a grama, os bambus, as ervas. Ventos violentos, vento nas ameias, na palha. Vento que é galope e cavalo, que escolta os gansos selvagens, que em tudo penetra. Vento da tempestade, vento que chega ao papel. Tal como o vinho exige sua taça, ou a faca cria seus cortes, tal como o vidro muda a ideia da luz, o papel, ele próprio mistura de fibra e vento, altera o sentido do vento, a memória que temos dele, o modo como o sonhamos. Institui talvez uma nova categoria de vento, um estalo seco e suave que encontrará sua perfeição nos livros. “Os caracteres que traço não precisam senão/ do rumor dos bambus: e são eternos! eternos!”, escreve Du Fu, traduzido por Cecília Meireles. Apanhado pelo vento, o papel é um rumor auditivo e tátil; farfalha dentro do poema.
[i] Não havendo menção em contrário, as traduções dos poemas que cito são as de Sérgio Capparelli e Sun Yuki.
[ii] Aqui a tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao (inclusive a do verso anterior).
[iii] Tradução de Maria do Rosário.
[iv] Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao.
[v] Tradução de Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao.
Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.
Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.
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