1.
Conversas entre amigos, de Sally Rooney (em tradução de Débora Landsberg), se passa em Dublin com protagonistas jovens universitários, relações afetivas e sexuais complexas, discussões teóricas e etílicas, problemas com o capitalismo tardio e até uma dose de catolicismo. Foi lançado em 2017 no Brasil, mas já era premiado, best seller e fenômeno internacional. Na época, todo mundo me dizia que eu deveria ler porque via semelhanças com minha literatura — ou talvez por que eu tinha acabado de voltar da Irlanda. E talvez porque eu ainda estivesse trabalhando no De espaços abandonados ou ainda aceitando o luto de voltar da minha estadia de um ano terra de Joyce, não o li. Até que fui incentivada pelo clube de leitura de Isadora Sinay e resolvi que, bem, talvez fosse o momento. Meio como uma criança que o pai empurra de leve para dar “oi” pra visita, mergulhei na leitura. Encontrei relações com todas as camadas complexas da realidade, cenários que me apertaram o pulmão (não, não era COVID-19), diálogos que reli de novo e de novo, personagens com preocupações que achei que só eu tivesse, cenas delicadas e construídas com precisão. Fiquei com uma sensação de: “poxa, devia ter lido este livro antes”.
2.
Stella Manhattan, de Silviano Santiago, é de 1985, mas se passa em 69, contando a história de Eduardo Costa e Silva. O jovem Eduardo se mete num escândalo por conta de sua sexualidade, e a família tradicional dá um jeito de enviá-lo para trabalhar no consulado brasileiro em Nova York — isso tudo depois da famosa troca de favores conhecida do período da ditadura. Ah, esqueci de comentar: Eduardo também é Stella Manhattan. O livro tem cubanos, terroristas, tem a dinâmica do movimento gay da época — mais precisamente, a dinâmica de esconder isso —, tem general chegado no sadomasoquismo, tem narradores diferentes, temas bastante contemporâneos, metalinguagem. Nunca ninguém tinha me recomendado o livro e o li por conta de uma associação aleatória na minha cabeça (livros que são parecidos com…). Foi um dos meus favoritos do ano, que terminei com a sensação de “poxa, devia ter lido este livro antes”.
3.
Ainda no começo do ano, li A menininha do Hotel Metropol: Minha infância na Rússia comunista, de Ludmilla Petrushevskaya (em tradução de Cecília Rosas). As memórias premiadas contam em trechos não-lineares sobre uma família de intelectuais bolcheviques que viraram membros da fila do pão logo após a Revolução Russa de 1917. Uma vida de pobreza, mas de livros, de crueldade infantil mas também da beleza de cantar para ganhar moedas. É um livro narrado sem autopiedade ou — pensando bem — qualquer piedade. Tudo é cáustico. Lançado no Brasil em janeiro de 2020, não fiquei com a sensação de “devia ter lido antes”, mas mais uma sensação de “como ninguém me avisou?”.
3.
No meio de tantos lançamentos e tantos motivos para ler algo, o “aniversário de cem anos do lançamento” de um, “a adaptação para a televisão” de outro, nossa lista de leituras se perde. Acabamos dando prioridade à última coisa que acrescentamos — esquecendo de quando colocamos Lydia Davis na lista, e da energia com a qual queríamos ler a autora. Mas aí saiu uma série nova, aí um professor falou de um livro.
Existe um movimento orgânico na lista de leituras — uma dança em colocar tantos livros na pilha, o esquecer simbiótico de quem recomendou o quê ou quando, uma colcha de retalhos de uma explicação tentativa, um tergiversar de reler uma sinopse e tentar se convencer de que em algum momento aquele livro fez sentido. Porque a verdade é que alguém — durante um café, enquanto você dizia que não gostou de um Philip Roth — disse: “quem faz isso muito bem é o Benjamin Moser na biografia da Susan Sontag.” E agora tem uma biografia da Sontag na sua lista de leituras. Logo em seguida, alguém postou uma foto nas ilhas gregas lendo a edição recém-lançada de Jane Eyre da Companhia das Letras. E por causa disso você começou a ler o Lili, de Noemi Jaffe, porque se perdeu no meio da compra e o livro era mais curtinho e você pensou “ah, vou ler esse antes rapidinho”. E até terminar Lili, Charlotte Brontë está soterrada por Donna Tartt que você nem lembra como surgiu na pilha.
4.
Umberto Eco diz que o livro não-lido é valiosíssimo. Ao contrário da última onda minimalista, os livros não-lidos numa biblioteca (ou numa pilha, estante, que seja) não estão ali apenas para serem lidos — mas para oferecer a possibilidade de algo. O livro não-lido é uma joia a ser descoberta. Quem nunca leu um livro excelente e ao terminar, pensou “queria poder apagar a experiência de leitura para ter toda essa sensação de descoberta de novo”?
5.
Queria fazer esse post porque acho essencial falarmos dos lançamentos, das coisas novas que vão chegando. E, claro, sempre falaremos dos clássicos. Mas e o livro excelente que não é lançamento? Aquele cuja campanha de marketing não nos atingiu, aquele que nossos amigos não leram? Quando vamos descobrir? Quando o momento estiver certo para eles. Os livros nos chegam em momentos particulares, mas nunca o momento errado.
Então, um brinde aos não-lançamentos. Aos livros que estão no fundo da pilha e enfim encontram seu momento de brilhar. Os livros que pensamos “devia ter lido antes”, mas a resposta é não, não deveria. Os livros nos alcançam no momento certo. Como peças de um quebra-cabeça, esses livros só funcionam quando encontram o seu outro encaixe. O outro encaixe aqui sendo este tirar o livro da estante. A hora do livro é a hora perfeita.