Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Biblioteca da Universidade de Harvard. Ms. 1222, de 1565.
Ao cair da tarde, o dragão deixa a praia e penetra na mata. Pressente o cheiro do touro, que desceu o morro para beber no lago. As árvores são baixas, não chegam a bloquear a brisa que circula pela ilha. Devagar, o dragão avança, abre caminho entre as folhas. O lago é raso, a água é lamacenta, mal alcança o joelho do touro. O dragão se acerca, observa-o: sua força, sua indiferença. O touro abaixa e levanta a cabeça, nunca olha para o lado. Sorve o máximo de água que pode. O dragão se arrasta, desliza para o lago. O touro continua a se refrescar. Se o dragão resvala em sua pata, ou o golpeia com a cauda, ele reage com um coice, não se intimida. O touro é um animal soberano, sem medo. Saciado, abandona o lago e sobe de volta o morro. Não nota o rastro de sangue na terra, a mordida que o dragão deixou na sua coxa.
No dia seguinte, ao cair da tarde, o touro retorna. Anda com dificuldade, não se importa. É a hora de aliviar-se. O dragão está na praia, já deduziu a sua presença – estica e retrai a língua, pescando algum inseto, monitorando a mata. O touro se demora na água, a lama camufla a ferida. Balança o rabo com irritação, as moscas não desistem. O dragão continua quieto. Com o sol fraco, o couro do dragão se torna prateado, como a superfície do mar. Ele só abandona a praia depois que o touro desaparece.
No terceiro dia o touro desce arrastando a pata. A ferida cresceu, a carne inchou, coberta de pus e capim. O dragão encosta-se na beira do lago, ofegante. A saliva cai em placas da sua boca, a língua captura o odor de sangue. O touro parece embriagado, as patas não aguentam o peso. Ele dobra o joelho, quase vai ao chão, ergue-se de novo. Abutres fazem um círculo no céu. De vez em quando, o touro entorta a cabeça para o alto, o branco dos olhos ressalta. O veneno do dragão está completando o seu trabalho. Em questão de minutos, o touro vai tombar.
Ao cravar os dentes na presa, o dragão de Komodo sabe que executa o último ato de seu rito. Rasgar o touro, devorá-lo: esse é seu momento mais furioso e vulgar. É o momento que o iguala aos outros predadores. O veneno produzido pelo dragão, misturado às bactérias da saliva, é uma arma poderosa, letal – ajuda a explicar a longa sobrevivência da espécie, seu reinado. Talvez não seja esse, porém, o aspecto mais admirável desse invento, que vem sendo aprimorado há milhões de anos. Se a evolução ofereceu ao dragão de Komodo a certeza de matar, entregou-lhe ainda um trunfo mais precioso e discreto – a espera. Durante dias, o dragão espera. Espera e cultua o touro, reverencia o seu sangue. Sob o sol da baía, sonha. Sonha com o touro, com sua silhueta divina. Enquanto o touro agoniza, o dragão experimenta o futuro, o banquete por vir. Medita sobre o sacrifício, os aromas, o tempo. Sonha, quem sabe, com o poder das asas e do fogo. A devoração da carne é uma banalidade; a espera pode ser o princípio de sua metafísica.
Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.
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