Extraordinárias: leia o perfil inédito de Marielle Franco, por Duda Porto de Souza e Aryane Cararo

12/12/2022

Ilustração de Vitória Ribeiro

Extraordinárias: Mulheres que revolucionaram o Brasil, de Duda Porto de Souza e Aryane Cararo, resgata a história de mulheres brasileiras que mudaram — e continuam mudando — a história do país. Em janeiro de 2023, o livro ganha sua terceira edição, que, além de ter sido revista e atualizada, conta com a adição do perfil de Marielle Franco. Leia o capítulo na integra abaixo.

Se preferir, você pode baixar o PDF com o capítulo diagramado clicando aqui.

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Marielle Franco

A voz dos direitos humanos

Nascimento: 27/7/1979, Rio de Janeiro (RJ)

Morte: 14/3/2018, Rio de Janeiro (RJ)

Algumas ausências são cheias de presença. Ocupam o vazio com um legado simbólico de luta, resistência, representatividade. De todos os vazios deixados por pessoas que lutaram contra a violência e a desigualdade no Brasil, o de Marielle Franco é talvez o mais presente. Está em placas de ruas, grafites, camisetas, nomes de bibliotecas e escolas, no Brasil e no mundo. Mas sua presença é sentida principalmente na pulsão de transformação. “Marielle, presente!” não é apenas uma frase de efeito. Ela continua presente, entre nós, dentro de nós.

Mulher negra, feminista e LGBTQIAPN+, Marielle nasceu e foi criada no Complexo da Maré, na zona norte do Rio. Foi uma das principais vozes de denúncia dos abusos cometidos pela polícia do Rio de Janeiro contra a população negra, feminina, LGBTQIAPN+ e favelada. Foi vereadora, presidente da Comissão de Defesa da Mulher, idealizadora do Espaço Coruja (de creches noturnas para que mães trabalhadoras pudessem estudar), e é hoje um símbolo internacional da defesa dos direitos humanos.

“Eu digo que ‘legado não é o que se deixa, é o que se leva adiante’”, comenta Monica Benicio, arquiteta e ativista, com quem Marielle teve um relacionamento de catorze anos. “Marielle, em vida, era uma mulher extraordinária. Só que ela, primeiro, entrou para a estatística, porque era uma mulher negra, favelada, mãe jovem, que trabalhou desde cedo e parou de estudar para ter a filha. Mais tarde terminou a faculdade, fez mestrado e virou vereadora. Ela conseguiu, depois de morta, o que não conseguiu em vida: despertar esse senso de reivindicação”, conta Monica, que também enveredou para a política institucional e foi eleita vereadora em 2020.

Marielle Francisco da Silva tinha 1,75 metro de altura, mas quem a via falando, imponente, poderia jurar que era maior. Ela adorava uma boa discussão, sem jamais partir para a agressividade. Era uma mulher de presença. “A Mari era muito firme, era líder. Não guardava desaforo, não tinha medo de falar o que tinha vontade, ela lutava pelo que queria”, relata a irmã Anielle Franco, professora, jornalista e diretora do Instituto Marielle Franco.

Mas quando não estava falando firme com os vereadores no plenário, estava rindo, transformando pequenos acontecimentos em grandes eventos. “Ela era muito parceira, carinhosa, muito mãezona da Luyara, muito madrinha, muito tia, muito irmã, muito tudo. Onde ela chegava, era espalhafatosa, brincava muito, amava funk”, lembra a irmã.

Era uma leonina que transbordava vida e tomava as dores do outro como se fossem suas. “O que fez muita diferença na construção da Marielle como indivíduo era um poder de escuta ativa que ela tinha e que refletia no fazer político”, Monica conta, e cita como exemplo o trabalho da companheira na Comissão de Defesa dos Direitos Humanos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), quando assessorou Marcelo Freixo. Lá, ela atendia tanto mães que perderam os filhos para o tráfico e para a violência policial como mães de policiais mortos em confronto com o tráfico, além disso teve contato com várias histórias de abusos milicianos.

Nasceu em 1979, e Anielle, de quem sempre ajudou a cuidar, cinco anos depois. Aos onze, Marielle conseguiu seu primeiro emprego, um estágio de auxiliar no colégio Luso-Carioca, garantindo bolsa de estudos para ela e a irmã no ensino fundamental. Também foi catequista. Porém, sua vida não se resumia a responsabilidades: as duas se divertiam muito em bailes funk e Marielle chegou a ser eleita Garota Furacão 2000.

Em 1998, entrou na primeira turma do curso pré-vestibular comunitário do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM). “O pré-vestibular tinha cara de movimento social”, conta o historiador Edson Diniz, morador da Maré por quarenta anos. Uma das propostas do cursinho era repensar o espaço da favela e criticar o próprio sistema do vestibular. A participação de Marielle era muito ativa, e o cursinho contribuiu para a construção da sua consciência crítica. “Desde o começo, ela se posicionava à frente. Tinha uma liderança natural que foi sendo aprimorada”, diz Edson.

Foi nessa época, aos dezoito anos, que engravidou. Casou com o jovem Glauco dos Santos, parou com o cursinho — ao qual voltaria dois anos depois — e foi trabalhar em uma creche como educadora. Luyara nasceu na véspera de Natal, em 24 de dezembro. Mas o casamento durou pouco, e mãe e bebê foram morar com Marinete e Antônio, pais de Marielle.

Quando ela voltou a estudar, a violência urbana ajudou a selar seu futuro militante: uma amiga do pré-vestibular morreu vítima de bala perdida. Em 2002, então, Marielle entrou para ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Depois fez mestrado em administração pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com uma dissertação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPS), em 2014.

Em meados dos anos 2000, se aproximou do então deputado Marcelo Freixo, de quem se tornou amiga e assessora. Em 2016, se elegeu vereadora pelo PSOL com uma votação inesperada e muito comemorada. Apresentou dezesseis projetos de lei e outras 102 proposições, contemplando temas como o combate ao assédio às mulheres no transporte público, o programa de desenvolvimento cultural do funk, o direito ao aborto nos casos previstos por lei e a assistência técnica gratuita para construção de moradias populares. “Favela não é problema. Favela é cidade. Favela é solução”, disse ao programa Cidade Partida, do Canal Brasil. Em fevereiro de 2018, virou relatora de uma comissão que fiscalizaria a intervenção federal na segurança pública do Rio. Em 10 de março, fez uma de suas últimas denúncias nas redes sociais: a violência da Polícia Militar contra moradores da favela do Acari. Só não fez mais porque seu tempo foi abreviado.

Era a noite de 14 de março de 2018, Marielle tinha acabado de discursar na Casa das Pretas, no Rio, e foi embora com o motorista Anderson Gomes e a assessora Fernanda Gonçalves Chaves. Na reunião do PSOL no dia seguinte, provavelmente seria confirmada como candidata a vice-governadora de Tarcísio Motta. Seu nome também figurou por meses como possível candidata ao Senado.

Por volta de 21h30, a cerca de trezentos metros do prédio da Prefeitura, um carro emparelhou com o seu. Ao menos nove tiros de metralhadora foram disparados. Ela e Anderson morreram no local, enquanto a assessora teve ferimentos leves. O crime chocou o mundo.

Passados anos, a pergunta segue sem resposta: quem mandou matar Marielle e Anderson?. O ex-policial militar Ronnie Lessa, acusado de ser o executor dos assassinatos, ainda não foi julgado. Enquanto o mandante não é apontado, a sociedade continua pressionando por justiça e ocupando o espaço que ela abriu no campo político. O efeito Marielle se fez sentir já no pleito de 2018, quando um número maior de mulheres negras se candidatou a um cargo eletivo.

Muitas iniciativas inspiradas em Marielle continuam a florescer. O Instituto Marielle Franco tem realizado diversas ações de destaque na área de violência de gênero, raça e educação. Seu nome também marca presença em logradouros públicos, como um jardim em Paris, uma rua no Rio, uma praça em São Paulo, outra em Brasília…

Seu legado segue adiante nos corações que tocou e mulheres do mundo todo. “Marcada na minha memória, no meu coração, na minha vida e agora na minha pele!”, escreveu Luyara Franco em sua rede social mostrando a tatuagem que fez em homenagem à mãe. Marielle está presente. Ela não foi, ela continua sendo.

 

MULHERES NEGRAS NA POLÍTICA

Apesar de serem 28% da população (IBGE), o maior grupo demográfico do Brasil, as mulheres negras representam apenas 6% dos vereadores e 4% dos prefeitos eleitos no pleito de 2020 (Gênero e Número; TSE).

Em 2021, uma emenda à Constituição (EC no 111/2021) estabeleceu que os votos dados a candidatas mulheres e a pessoas negras serão contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral.

A primeira mulher negra a ser eleita para um cargo legislativo foi Antonieta de Barros, em 1934.

“A última mensagem que ela me mandou […] era uma matéria sobre cuidados com o cabelo. A mensagem era assim: ‘Para a gente nunca esquecer de cuidar da nossa coroa’. Esse é o legado dela.”

Luyara Franco, no livro Mataram Marielle

“O legado dela é para que a humanidade se humanize.”

Renata Souza, no livro Mataram Marielle

“Então você vê um pouco de beleza no caos. Vê que, através da morte, a Marielle conseguiu realizar uma coisa que tinha como objetivo de vida, que era essa pulsão de transformação social.”

Monica Benicio

“Não serei interrompida.”

Marielle Franco, em discurso na Câmara dos Vereadores em 8 de março de 2018

“Quanto mais a gente puder inspirar outras meninas, seja na Maré ou em qualquer outra favela, seria incrível, para que elas entendam que elas podem ser tudo, inclusive o que a Mari foi, e o que ela é.”

Anielle Franco

“A Marielle comprava todas as brigas que tinha de comprar. Ela representava aquilo que muito brasileiro quer na política.”

Marcelo Freixo

“Vou continuar sim como mãe, como mulher negra, e não vou parar porque era isso que Marielle fazia.”

Marinete Silva

“Marielle vive, e continua a ser um farol de esperança para pessoas de todo o mundo que acreditam profundamente, como ela, na possibilidade iminente de uma transformação radical no Brasil, nas Américas e em todo o planeta.”

Angela Davis

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