Adriana Carranca: 'As afegãs não são vítimas à espera de um príncipe. Elas são sobreviventes'

13/01/2023

Se Pablo Neruda estava certo quando escreveu que "os poetas odeiam o ódio e fazem guerra à guerra", o que a jornalista Adriana Carranca faz em seu novo livro é (também) um manifesto de resistência poética. Autora do best-seller Malala, a menina que queria ir para a escola (Companhia das Letrinhas, 2015), ela lança seu segundo trabalho dedicado aos leitores em formação, Entre sonhos e dragões (Companhia das Letrinhas, 2022). Neste livro, Adriana apresenta a história recente do Afeganistão às crianças a partir do ponto de vista de três meninas afegãs que se reinventam em um cenário de privação de direitos. 

Ilustração mostra as três meninas afegãs em que se baseia a narrativa de Entre sonhos e dragões, de Adriana Carranca

Essa narrativa inspirada em histórias reais exalta os talentos e a importância das meninas afegãs nas artes, no esporte e na educação

Koh hardadarbolandbashadbaazhamsar e khodrahdarad
[Existe uma estrada até mesmo ao topo da montanha mais alta]
(Provérbio afegão)

Arte e esporte como armas de luta

Misto de romance e biografia ilustrada, a obra ficcionaliza e ao mesmo tempo apresenta em formato de perfil a vida de três meninas afegãs que a autora conheceu durante sua passagem pelo Afeganistão: Sadaf, Shamsia e Meena. Para Sadaf, diziam que sua vontade de pilotar aviões e brincar de luta eram "coisas de menino". Já a Shamsia, que mirabolava um plano secreto de cobrir a cidade de cores que apagassem as memórias da guerra, foi negado seu pincel. O desejo de Meena era silenciar os ruídos da guerra, mas a música foi proibida pelo Talibã. Porém, nenhuma delas aceitou as coisas como eram, e isso foi só mais um jeito de enfrentar os monstros.

Elas desejaram ter nascido meninos. Mas os meninos tampouco tinham tempo para tudo aquilo. Eles só aprendiam a guerrear e logo estariam nos campos de batalha, pois uma nova guerra se aproximava.
(Trecho do livro Entre sonhos e dragões)

Mas quem é o dragão do título do livro? Além dos lagos azuis, das montanhas majestosas e dos desertos a perder de vista típicos da geografia afegã, seria a fantasia outro elemento insólito a destoar na paisagem de uma guerra incessante?

Desde a invasão do país pela força aérea soviética, quando a maioria dos afegãos dos vilarejos isolados nas montanhas viu aviões pela primeira vez – aviões que soltavam bombas incendiárias –, muitos passaram a acreditar que os dragões existem. Isso até hoje. (Adriana Carranca, jornalista e escritora)

Capa do livro infantil Entre sonhos e Dragões, de Adriana Carranca, sobre a vida no Afeganistão

Em comum com a ativista paquistanesa Malala Yousafzai, as três protagonistas deste novo livro têm acima de si uma carga histórica e cultural de opressão e violência que as antecede, mas principalmente a coragem para enfrentar o Talibã. No lugar do fatídico lápis de Malala, as meninas agora têm como instrumento de luta três objetos ainda mais alheios à guerra, e justamente por isso potentes contra ela: um violoncelo, uma lata de tinta e uma luva de boxe. 

Desde a retomada do grupo extremista Talibã ao governo, em agosto de 2021, o Afeganistão sofre uma dura etapa da grave crise humanitária que se estende por duas décadas. Segundo o Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados, mais conhecido como Agência da ONU para Refugiados), metade da população do país depende de ajuda humanitária para subsistência básica. Enquanto organizações internacionais lutam para conter a fome e a violência no país, e milhões de afegãos enfrentam um cotidiano de deslocamentos e medo, a literatura se reafirma como um lugar de ressignificação de uma narrativa de dor que é também potência e capacidade de transformação.

Enquanto as mulheres são segregadas e discriminadas na vida real, essas histórias têm como protagonistas heroínas fortes e inteligentes que servem de modelo de infância para as meninas afegãs. (Adriana Carranca, escritora e jornalista)

Adriana Carranca, no campo de refugiados Jalozai, no Paquistão. Crédito: Arquivo pessoal.

Autora de publicações jornalísticas sobre o contexto geopolítico do Oriente Médio – O Irã sob o chador (2010), em coautoria com Márcia Campos, e O Afeganistão depois do Talibã, Adriana Carranca fez sua primeira incursão pelo universo das crianças em Malala, a menina que queria ir para a escola, primeiro livro-reportagem a abordar o tema com o público infantojuvenil. Reconhecida internacionalmente por sua atuação como enviada especial a zonas de conflito, Adriana transforma, em seu novo livro, a matéria-prima de seu ofício em possibilidade de reinterpretar a realidade a partir de uma perspectiva vitalista – não por acaso, em diálogo franco com as crianças.

Nesta entrevista, ela compartilha a jornada que a levou do conhecimento à cumplicidade amiga com as três meninas afegãs protagonistas de Entre sonhos e dragões, conta histórias curiosas de sua trajetória pelo Oriente Médio e compartilha suas impressões como testemunha corpo a corpo de uma guerra cheia de humanidades envolvidas. O livro conta algumas delas. Afinal, a literatura pode estar, como diria Ailton Krenak, entre as “ideias para adiar o fim o mundo”. Embora parte dele continue acabando todos os dias, há começos novos aqui e ali. Mais que começos, revoluções. É preciso olhar para elas.

 

Leia a entrevista completa com Adriana Carranca

Quando e como a ideia para escrever Entre sonhos e dragões te atravessou, durante seu trabalho no Afeganistão?

Adriana Carranca: Surgiu da minha surpresa ao encontrar no Afeganistão meninas e mulheres tão fortes, corajosas, desafiadoras, determinadas e decididas a mudar o próprio país e o mundo. Quando falamos sobre o Afeganistão, nos vêm à mente mulheres escondidas sob a burca e oprimidas. Embora a opressão seja uma realidade vivida pelas afegãs, elas não sofrem caladas. Elas lutam.

Então, comecei a refletir sobre a forma como o mundo ocidental olha para elas, muitas vezes como pobres coitadas, incapazes de se defender, que precisam de ajuda, e sobre como esse olhar é preconceituoso e reforça a invisibilidade delas imposta pelo Talibã. As afegãs não são vítimas à espera de um príncipe encantado para salvá-las. Elas são sobreviventes. E mais: são elas as verdadeiras guerreiras, porque viver em um país como o Afeganistão significa lutar e vencer todo o tempo seja para simplesmente existir ou para realizar algo extraordinário como o espaço conquistado por Sadaf no ringue, a arte de Shamsia e a música de Meena.

Eu queria mostrar a força dessas meninas e sua forma pacífica de lutar usando outras armas: armas pacíficas como pincéis e latas de tinta spray, luvas de boxe e um violoncelo. Eu também queria mostrar o poder das artes visuais, da música e do esporte para transformar pessoas, mesmo em meio ao caos e à violência. E como essas pessoas podem mudar o mundo. (Adriana Carranca, jornalista e escritora)

Como foi o primeiro contato com as meninas que inspiraram as protagonistas do livro, e quais recursos você utilizou para transformar essas trajetórias em uma narrativa literária? 

Eu conheci as meninas afegãs que inspiram Entre sonhos e dragões em diferentes viagens que fiz como repórter ao Afeganistão. Shamsia fazia sua primeira exposição coletiva, em um centro cultural mantido pelo governo da França, e estava iniciando na arte de rua. Nós nos encontramos outras vezes e ela me apresentou a uma nova geração de artistas afegãos. Visitamos a Galeria Nacional do Afeganistão, que teve seu acervo preservado durante o primeiro regime do Talibã graças à coragem e ao empenho de artistas que se arriscaram para esconder as obras ou disfarçá-las pintando arte religiosa sobre as telas com tinta lavável.

Sadaf havia acabado de voltar de uma competição internacional, abrindo espaço para as meninas dentro e fora do ringue. Já Meena eu conheci através do querido Dr. Ahmad Naser Sarmast, etnomusicólogo afegão que cresceu refugiado na Austrália e voltou ao seu país após a ocupação dos Estados Unidos para fundar, em 2010, o Instituto Nacional de Música do Afeganistão.

Foto da jornalista Adriana Carranca, autora dos livros infantis Malala, a menina que queria ir para a escola e Entre sonhos e dragões

Adriana Carranca conheceu Meena, Sadaf e Shamsia em diferentes viagens que fez ao Afeganistão como repórter. Foto: arquivo pessoal

Imersa na acústica de uma de suas salas, eu me dei conta de como os sons da guerra estavam presentes no cotidiano do Afeganistão. E como esses sons interrompiam os sonhos das meninas – tanto no sentido literal, quando acordávamos no meio da noite com o barulho dos aviões militares sobrevoando a cidade rumo a alguma zona de combate, como figurativo na medida em que a violência aumentava impondo novos desafios às meninas.

Outra fonte de inspiração foram lendas e contos afegãos milenares. Enquanto as mulheres são segregadas e discriminadas na vida real, essas histórias têm como protagonistas heroínas fortes e inteligentes que servem de modelo de infância para as meninas afegãs. Depois, existe toda a história milenar e fascinante do Afeganistão, com suas rainhas, princesas e guerreiras de verdade, uma história digna de um conto de fadas.

 

Este é um livro que tem uma densidade política grande, por trazer à tona as complexidades da história recente do Afeganistão. Qual a importância de uma obra como essa para as crianças e os jovens brasileiros?

Embora o livro tenha sido inspirado pelas histórias reais de três meninas afegãs, a mensagem que procuro transmitir é simples e universal. Este não é um livro sobre o Afeganistão, mas sobre o papel das meninas na sociedade e sobre o conhecimento – a arte visual, a música e o esporte, inclusive – podem ser instrumentos poderosos contra as guerras.

Enquanto os meninos destruíram o país, pois só aprenderam a guerrear sem que isso trouxesse qualquer benefício à população, as meninas se unem a eles trazendo outro olhar e novas armas, armas pacíficas, para enfrentar os dragões e outros seres monstruosos que ameaçam o reino. (Adriana Carranca, jornalista e escritora)

Há milhares de mulheres e crianças em diversas tradições e religiões que vivem hoje sob regimes marcados por violências. Este livro conta algumas dessas histórias. Como você vê o limite entre seguir uma cultura e violar os direitos humanos? E como é para você como mulher brasileira ocupar esse lugar limítrofe?

Nós frequentemente atribuímos a violência contra a mulher à cultura de um povo, o que abarca suas crenças e religiões. Mas, em minhas reportagens de campo, o que encontrei foi a manipulação e a exploração da fé como instrumento de controle e poder. Isso acontece do Brasil ao Afeganistão.

Ilustração do livro infantil Entre sonhos e dragões, que conta a história de três meninas afegãs, por Adriana Carranca, pela Companhia das Letrinhas

Meena, Shamsia e Sadaf sonhavam em mudar o mundo que observavam de suas janelas e que viam perecer. Quando os dragões ocuparam o céu outra vez, elas decidiram ir à luta

Um dos elementos presentes no livro é o dragão, um símbolo do imaginário afegão. Pode contar um pouco mais sobre esse significado?

A ideia dos dragões surgiu da presença constante dessas criaturas na mitologia afegã e na consciência coletiva dos afegãos. Desde a invasão do país pela força aérea soviética, quando a maioria dos afegãos dos vilarejos isolados nas montanhas viu aviões pela primeira vez – aviões que soltavam bombas incendiárias –, muitos passaram a acreditar que os dragões existem. Isso até hoje.

Decidi, então, usar esse elemento no livro. A primeira invasão de dragões refere-se aos bombardeios aéreos massivos durante a ocupação soviética na década de 1980. Para descrever a cena, usei um compilado de relatos de afegãos que testemunharam esses ataques. A segunda invasão de dragões, mais ágeis e incendiários, refere-se ao uso de drones (aviões não tripulados) durante a ocupação americana.

 

A realidade das mulheres e meninas afegãs se particulariza por uma cultura distinta da nossa. Quais pontos em comum você vê entre os dois cenários, e como os leitores podem se identificar e aprender com as protagonistas?

Vou te contar sobre uma viagem ao Egito, a convite de uma amiga, que mudou a minha visão de mundo. Nós cursávamos o mestrado em Políticas Sociais e Desenvolvimento na London School of Economics e, nas férias da primavera, ela pediu que a ajudasse a escolher o futuro marido entre três pretendentes aprovados por seus pais. Éramos quatro meninas: uma egípcia muçulmana, uma filipina cristã protestante, uma canadense de origem judaica e eu, uma brasileira agnóstica com todo o seu sincretismo religioso típico do país. Eu pensei: essa viagem não vai dar certo! Mas, reunida com elas todas as noites no quarto dessa amiga para conversar após mais um dia de passeios pelo Cairo e arredores, percebi que nós éramos apenas quatro meninas comuns e que, entre nós, não havia muros ou conflitos, apesar das nossas diferenças de origem, nacionalidade, cultura, língua, etnia e crenças.

Ali comecei a refletir sobre como nós, jornalistas, mesmo que inconscientemente e talvez pela natureza da profissão, muitas vezes acabamos por destacar as diferenças entre pessoas e povos.

Em campo, percebi que há muito mais do que nos une como humanidade do que nos aparta. (Adriana Carranca, jornalista e escritora)

Em tempo: minha amiga não se casou com nenhum dos três pretendentes, mas com outro egípcio que ela conheceu quando comemoramos o meu aniversário em um animado sambão em Londres [risos]. Voltei ao Egito para o seu casamento e de lá parti para o Irã. Assim comecei minha trajetória de coberturas internacionais.

A jornalista e escritora Adriana Carranca com crianças afegãs. Crédito: arquivo pessoal.
 
Pensando do lado das meninas afegãs, como você enxerga que foi para elas o impacto de ver suas histórias de vida valorizadas e transformadas em livro?

Gostaria de citar uma frase da ilustradora, uma talentosa artista afegã que assina o livro apenas com as iniciais de seu nome por ainda viver no Afeganistão, sob domínio do Talibã. Ela me disse: “Depois de tudo o que aconteceu em meu país, eu fiquei tão triste que não conseguia expressar meus sentimentos. Mas, ao fazer as ilustrações para essa linda história, eu chorei, dei risadas, sorri e adormeci como se estivesse mergulhando entre os sonhos da minha watan (terra natal).

 

De toda a pesquisa para o livro e contato com as meninas, o que você destaca como mais valioso na elaboração desse livro, e como ele te transformou?

A experiência mais valiosa para um repórter é sempre “a rua”, como dizemos quando deixamos a redação para uma reportagem in loco, ou “o campo”, no caso das viagens internacionais. O jornalismo me levou a lugares onde eu jamais poderia ter imaginado estar um dia. Lugares e culturas que a gente só consegue compreender realmente convivendo entre os locais. Eu diria isso sobre todos os lugares, mas sobre o Afeganistão em especial por se tratar de um território que serviu de passagem para tribos nômades antes ainda do período Neolítico e, mais tarde, para exploradores e conquistadores das mais antigas civilizações, tornando-se um caldeirão cultural. Mas ainda preserva muito do seu passado e funciona de acordo com o sistema tribal milenar, entre outros fatores por seu isolamento geográfico, cultura distinta e sucessivas invasões.

Viajar para o Afeganistão é como entrar numa máquina do tempo e desembarcar num passado distante mais de dois mil anos. (Adriana Carranca, jornalista e escritora)

Ilustração do livro infantil Entre sonhos e dragões, de Adriana Carranca, pela Companhia das Letrinhas, que fala sobre três meninas afegãs

Depois de contar a história da paquistanesa Malala Yousafzai em Malala, a menina que queria ir para a escola, em seu novo livro Adriana Carranca convida os leitores a conhecerem a história de três meninas afegãs

Como é o seu contato com as meninas afegãs hoje, e onde elas se encontram? Elas terão ou já tiveram acesso ao livro? Se sim, como foi?

Tenho falado com Meena, a violoncelista, e com a jovem afegã que ilustrou o livro quase toda semana. A ilustradora ainda vive no Afeganistão, sob o domínio do Talibã, por isso assina a obra usando apenas as iniciais de seu nome. Espero que ela possa deixar o país em breve e em segurança e ter finalmente o reconhecimento que merece por sua arte. Mas essa esperança vem se enfraquecendo dia a dia com a demora e os obstáculos inimagináveis que ela e o marido enfrentam para obter um visto e poder criar o filho pequeno longe da violência. 

Quando o Talibã reocupou o poder central no Afeganistão, em agosto de 2021, Meena estava em Cabul. Ela havia recebido a notícia de que havia sido aceita para estudar em uma universidade em Michigan, nos EUA. Uma semana depois, o Talibã estava de volta e ela já não podia deixar o país. Chorei ao perceber o desespero dela. Um mês depois, ela conseguiu fugir e hoje vive na cidade americana.
 
Já Shamsia estava fora do país quando os extremistas reocuparam o poder e não pôde voltar para casa. Ela viajava a trabalho, atendendo a um dos diversos convites que recebe para expor sua arte em todo o mundo. Sadaf vive na Espanha desde 2016, quando viajou ao país europeu para a estreia de um filme sobre boxe feminino e pediu asilo.

 

Por fim, como seria um mundo finalmente justo para mulheres e meninas, independente de sua cultura, crença ou tradição? 

Um mundo em que elas tivessem o direito de fazer suas próprias escolhas. Quando visitei a advogada iraniana Shirin Ebadi, ganhadora do Nobel da Paz, em sua casa em Teerã, ela tinha o cabelo e parte do rosto cobertos quando abriu a porta. Perguntei a ela por que usava o hijab (véu islâmico, que o regime dos aiatolás tornou obrigatório), uma vez que entre as demandas das mulheres iranianas estava o fim de tal obrigação. Ela me disse: “Porque não luto para não usar o véu. Luto pelo direito de escolher, ainda que eu escolha usá-lo”. 

Acho que o direito de escolha abarca as diferentes demandas das mulheres em todo o mundo. Mas, para que isso se torne realidade, é preciso que a educação de meninas e o acesso delas à informação sejam universais, porque só o conhecimento amplia as nossas possibilidades, caminhos e opções, e nos permite fazer as melhores escolhas.

 

(Texto: Renata Penzani)

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