Clube do Pepezinho: um manifesto pela criatividade e pela autenticidade da infância

22/03/2024

Se você faz parte da legião de seguidores de Dav Pilkey, e já acompanhava a coleção do Homem-Cão, provavelmente já conhece o Pepezinho. O gatinho, filho do (ex)malvado gato Pepê, se tornou um personagem tão interessante que ganhou uma coleção própria, que já está no quarto volume:  O Clube do Pepezinho (Companhia das Letrinhas). 

Para Gabriela Tonelli, que além de editora da coleção, é uma fã assumida, Pepezinho é “um gatinho poderoso e transformador”. Não apenas pelo arco do personagem na história, ou seja, a maneira como ele se desenvolve e evolui, mas principalmente por sua capacidade de despertar reflexões e iniciativas positivas. “Com as suas pequenas palavras e ações, ele consegue desdobrar mil e uma consequências incríveis. Como as crianças”, comenta a editora.

São quatro livros já publicados na coleção. O primeiro, O Clube do Pepezinho (Companhia das Letrinhas, 2021), mostra o início do clube, no qual o próprio Pepezinho é o presidente e a girina Molly, que é sempre a voz da razão, a vice. Eles se reúnem com 21 sapinhos, entre eles o sempre confiante Melvin, a autoritária Nanda, as gêmeas Carla e Sônia, e o pai de todos eles, Flippy, para fazer o que todos nós naturalmente somos capazes: arte.

E nos livros seguintes, continuamos acompanhando, semana a semana, as atividades do clube, as invenções dos girinos e as questões com as quais eles se deparam no processo de criação de suas histórias - além dos percalços que surgem na convivência. No segundo livro, O Clube do Pepezinho - Perspectivas (Companhia das Letrinhas, 2022) os diferentes pontos de vista dos sapinhos enfatizam o desafio de aprender a trabalhar em grupo. No terceiro, O Clube do Pepezinho - com propósito (Companhia das Letrinhas, 2022), os sapinhos quebram a cabeça tentando encontrar um propósito para suas criações enquanto lidam com imprevistos. Nanda e Melvin querem fechar contrato para publicar a histórias deles em uma editora e, para aumentar a confusão, ela compra uma máquina de sorvete - tentando ficar rica! - e provoca a maior comoção. E no último livro, O Clube do Pepezinho - colaborações (Companhia das Letrinhas, 2023), os girinos continuam criando histórias e fi-nal-men-te estão prestes a fechar contrato com uma editora... por isso, precisam lidar com questões como direitos autorais, plágio e dinheiro - fazendo um baita esforço para não torrarem todo pagamento em doces. Os livros são recomendados para crianças a partir de seis anos e estão divididos em capítulos curtos, que podem ser lidos sem exigir demais de leitores recém-letrados.

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Licença pra criar - e experimentar possibilidades


A ideia do clube é criar um espaço de discussão para contar histórias e despertar possibilidades artísticas e criativas na produção de quadrinhos. No Clube do Pepezinho, não tem ideia boa ou ruim nem jeito certo ou errado de fazer: toda criação é válida - como deveria ser! 


Os quadrinhos do Clube do Pepezinho  ajudam a potencializar a liberdade criativa e abrem múltiplas possibilidades de produzir, colocando a arte aos alcance dos leitores. “Todo mundo pode desenhar, todo mundo pode escrever, todo mundo pode contar uma boa história, todo mundo pode fazer quadrinhos, todo mundo pode ser criativo e existem mil formas de fazê-lo. Eu acho incrível como o Pilke mostra isso e, especialmente, como explora diferentes técnicas artísticas”, destaca Gabriela.

Com o incentivo de Pepezinho, os sapinhos começam a elaborar seus quadrinhos utilizando muitas ferramentas e linguagens diferentes: fotografia, desenho, pintura, esculturas, dobraduras... “Pilkey vai até para a poesia japonesa. Ele explica o que é um haicai, faz realmente uma viagem”, comenta a editora.  E lançam mão de massinha, lápis, caneta, tinta guache e até comida - no quarto livro, um personagem policial é feito de marshmallow!  Os girinos também empregam muitos materiais reaproveitados - de rolos de papel higiênico a caixas de papelão coladas com fita adesiva. Tudo isso para mostrar como a arte e a criatividade podem estar ao alcance de todos, de forma descomplicada e orgânica. Basta ter uma ideia.

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Dav Pilkey e o resgate de uma infância autêntica 

Muitas das referências que o autor traz para os quadrinhos do Clube do Pepezinho fizeram parte de sua própria infância. “Ele mostra filmes e personagens de quando ele era criança, brinquedos antigos que ele transforma em personagens. Eu acho isso fascinante da série”, diz Gabriela. 

Os personagens criados por Pilkey chamam a atenção por sua curiosidade e espontaneidade - uma marca registrada das crianças. Os girinos trazem as ideias mais inusitadas para suas histórias. Tem quadrinho sobre uma escova de dentes que queria ser advogada de dinossauros, sobre um misto quente monstruoso… E até pautas mais escatológicas como uma história sobre um cão que fez um cocozão. Há espaço para criação sem julgamentos, sem ter que fazer sentido e com incentivo à participação das crianças. Depois da história do cachorro, há um passo a passo para que o leitor também aprenda a desenhar um cocô, por exemplo. Indicar o caminho de como aquilo que está nos quadrinhos pode ser feito pelos próprios leitores também é um recurso presente nas obras.

Ilustração de O Clube do Pepezinho 3 - com propósito

Mas cocô não é único tema que gera certo constrangimento. Morte, violência e outras pautas que costumam exercer certo fascínio sobre os pequenos e que, à medida em que crescemos, provocam certo desconforto, são trazidos por Pilkey com naturalidade - e sem filtro. Os sapinhos também se debruçam sobre assuntos que à primeira vista podem parecer complexos demais para crianças que ainda estão começando o Ensino Fundamental. Por exemplo, o conceito de paródia e uma discussão sobre plágio e direitos autorais. A sensação é que, para o  autor, é como se todas as prateleiras tivessem que ser pensadas para ficar ao alcance das crianças - nada é  difícil demais ou inadequado. Só precisa ser adaptado ao entendimento delas.

Mas o principal é que histórias que os sapinhos inventam nos quadrinhos poderiam ter sido contadas por qualquer criança. Para a editora, esse retrato autêntico que o autor consegue fazer da infância é um dos elementos que geram tanta conexão com os leitores. “Pilkey consegue entrar nesse imaginário infantil e relembrar como era. Ele mesmo foi uma criança que fazia quadrinhos e vendia quadrinhos para os amigos. É muito legal que ele acessa esse lugar da criança que ele já foi e fica muito fácil de se identificar”, comenta Gabriela. Até a forma descomplicada como as ilustrações são pensadas, sem muita firula ou excesso de detalhes, de um jeito até despretensioso, aproxima ainda mais o autor do universo infantil. 

Para os leitores, fica um gostinho de liberdade. Pepezinho inspira os girinos a abraçar os erros. E não olhá-los como fracassos, mas como tentativas. Em um mundo de alta produtividade e perfeição, em que até as crianças são cobradas cada vez mais cedo por resultados e performance e "fazer direito", é como se Pilkey parasse os relógios. Como se criasse uma fenda no tempo-espaço para apenas olhar ao redor e explorar quantas possibilidades há de se materializar uma ideia. Um resgate bonito do prazer de se contar histórias não para que elas venham a se tornar algo grandioso - mas porque já são. 

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