Discussões potentes e urgentes. Assim foi o segundo dia da Jornada Pedagógica 2024, que acontece até 11 de abril (inscreva-se aqui). Em sua 5ª edição, o evento traz para o debate o papel da literatura na sociedade e na educação, com o tema Literatura pra quê? Entre arte e educação.
Ilustração do livro Será que a Terra sente? (Pequena Zahar, 2023)
A primeira mesa do dia trouxe um tema que requer atitude e urgência: Emergência climática na escola: literatura e não ficção. Com a participação da ativista climática e embaixadora da Organização das Nações Unidas (ONU), Amanda Costa; de Aline Kayapó, escritora e ativista no movimento nacional de mulheres indígenas, e do jornalista ambiental Matthew Shirts, a mesa falou sobre a crise climática, trouxe críticas ao modo de vida atual e apontou novos caminhos possíveis. A mediação foi da escritora, ilustradora, atriz e cineasta Rita Carelli.
“A crise é muito mais que climática. E acho que a gente está vivendo um momento em que há muitos livros que abordam isso. Estamos saindo desse lugar de esconder debaixo do tapete esse problema. A gente precisa falar, e precisa falar para as crianças e assim começar a construir essa transformação. Antes as pessoas criticavam o movimento ambientalista, mas hoje já não se imagina fazer isso, afinal, está todo mundo sentindo os efeitos da crise. Precisamos olhar para isso com honestidade”. Rita Carelli
Já a segunda mesa do dia trouxe a relação entre Literatura e Educação Inclusiva. Entre as convidadas estiveram presentes Carla Mauch, pedagoga e pesquisadora de educação inclusiva, e Carolina Videira, empreendedora social e consultora. A mediadora do debate foi a editora da Companhia das Letras, Debora Alves, que iniciou as discussões citando o artigo 4 da Lei 13.146, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que estabelece a educação para todos, como um princípio democrático. "Como tem sido a realidade escolar diante desse texto normativo? Os educadores precisam compreender que é preciso considerar a diferenças, acolher a todos sem exceção. A gente precisa refletir e questionar se a realidade escolar inclui ou exclui, e a gente acredita que uma das chaves de acesso da inclusão é a literatura”, refletiu a mediadora no início dos debates.
Crise climática e a literatura como ferramenta para transformação
Amanda Costa, Aline Kayapó, Matthew Shirts e a mediadora Rita Carelli
A primeira mesa do dia trouxe um debate crítico e mobilizador. Para começar as reflexões, a ativista climática e embaixadora da ONU Amanda Costa, que é moradora da Brasilândia, distrito periférico da zona norte de São Paulo (capital), contou que, durante seu curso de Relações Internacionais, começou a se questionar sobre o porquê de as comunidades mais afetadas pela crise climática não participarem dos debates sobre o clima. A partir daí, criou o Perifa Sustentável, projeto com objetivo de mobilizar juventudes em prol da agenda de desenvolvimento da ONU, com ações de educação comunitária que discutem a justiça racial e ambiental.
“O debate climático no Brasil está muito embranquecido. Quando eu me vi nesse lugar de falta de representação, decidi que eu iria construir uma ponte para que outras pessoas pretas, de periferia, também pudessem ter acesso a esse espaço. E quando a gente acessa esse espaço, acaba entendendo que o que fundamenta a crise climática é a crise do capitalismo, que é uma crise social, econômica e ambiental. Vivemos um modo de vida baseado na exploração, na competição e na disputa, e os recursos naturais são os mais impactados. Enxergar isso é fundamental para entender o cenário". Amanda Costa
Em sua fala, Amanda também explicou de forma bem didática o problema da crise climática e como chegamos a esse aumento da temperatura da Terra, que vem ocasionando mais chuvas, ondas de calor e outros problemas ao redor do mundo. “Hoje se fala em crise, pois o termo requer urgência. Precisamos compreender que a mudança tem que ser agora”, disse ela, que também faz parte do movimento Fridays for Future, fundado pela ativista Greta Thunberg. “A gente precisa começar a pensar em mitigação e adaptação climática. Assim como precisamos racializar esse debate, pensando nas pessoas que mais são afetadas por essa crise”, finalizou ela.
Na sequência, a escritora e ativista do movimento de mulheres indígenas, Aline Kayapó, trouxe uma fala emocionada e de alerta a respeito da questão indígena. “Não tem como falar da questão indígena e não fazer uma crítica ao capitalismo. São questões que andam junto. Ainda hoje, existem comunidades indígenas que não têm água potável", disse ela.
"Nós temos que entender que os povos indígenas brasileiros têm uma dignidade que precisa ser observada pelo estado brasileiro". Aline Kayapó
A autora ainda falou sobre o quanto a literatura pode contribuir nesse processo, criando uma ponte entre o entorno e as comunidades indígenas. “Essa mudança só vai acontecer por nós. Temos que pensar na continuidade da vida nessa perspectiva, e valorizar escritores que atuam nessa manutenção da cultura”, finalizou Aline.
Para encerrar a primeira mesa, o jornalista ambiental Matthew Shirts contou como se envolveu com a causa climática e mostrou otimismo ao refletir sobre o quanto o cenário vem melhorando nos últimos anos. “Durante muito tempo eu editava a revista National Geographic no Brasil, e há dez, quinze anos atrás, quando eu colocava uma reportagem sobre a crise climática na capa, as vendas caíam muito. Hoje a gente vê um movimento muito maior de pessoas engajadas, e isso deve ser um motivador para a questão", reflete.
“Os jovens estão se organizando, e o Brasil tem uma presença importantíssima das mulheres pretas e indígenas nos debates climáticos e isso me traz uma alegria imensa. Eu vi essa mudança acontecer, pois antes não existia essa mobilização. Se os EUA investem minimamente na questão climática, é em decorrência da luta da juventude engajada com a causa". Matthew Shirts
Para fechar sua fala, o jornalista ressaltou a importância de o debate ser diário, sobretudo na educação e na sala de aula. Durante as perguntas dos participantes da Jornada, os convidados falaram sobre a importância da literatura indígena e negra, indicando diversas obras de ficção e não ficção.
LEIA MAIS: Biblioteca do pequeno ativista ambiental: 12 livros essenciais
A literatura como portal para a inclusão
Carolina Videira, Carla Mauch e a mediadora Debora Alves
A primeira convidada da segunda mesa foi Carla Mauch, pedagoga e pesquisadora de educação inclusiva. Ela trouxe a perspectiva de que, quando falamos de literatura e educação inclusiva, estamos falando sobretudo de diferença. Ressaltou também que a educação, e consequentemente a literatura, é um direito de todos. “As poucas políticas inclusivas que temos hoje são muito recentes e são cotidianamente ameaçadas. Ao escolhermos um livro, temos que pensar em como acolher essas diferenças”, disse ela.
Carla toruxe a pauta da acessibilidade dos livros para as crianças com deficiência, apresentando o projeto Bibliotecas Acessíveis, gerido pelo Mais Diferenças, organização fundada por ela. O Mais Diferenças assessora, pesquisa, estuda, experimenta, produz e compartilha conhecimento, práticas, modos de fazer, materiais e publicações relacionadas à educação e cultura inclusivas, tendo como princípios básicos a acessibilidade e a garantia aos direitos das pessoas com deficiência. “A gente vê o incentivo público a uma diversidade maior de obras literárias nas escolas, mas quase nada de investimento em livros acessíveis em todas as formas", observou.
"O livro de papel não é acessível para todos, infelizmente. E é necessário que pensemos em livros de múltiplos formatos acessíveis”. Carla Mauch
Segundo ela, em decorrência do baixo investimento nos livros em formatos acessíveis, é preciso que se invista numa mediação qualificada para professores e educadores, como uma forma de garantir o acesso às pessoas com deficiência. “É fundamental que possamos valorizar as pessoas com deficiência como leitoras, que a gente possa inventar cada vez mais e perceber que existem muitas formas de ler . A gente precisa trabalhar em múltiplos letramentos. A literatura não pode ser instrumental para as pessoas com deficiência, a gente precisa pensar em todo o processo da produção do livro e isso tem a ver também com valor simbólico. É dizer que a gente acredita e vai fazer o melhor livro possível pra ela, assim como fazemos para todos os leitores”, finalizou a pesquisadora.
Na sequência, foi a vez de Carolina Videira, empreendedora social e consultora, que apontou como desigualdade no Brasil se reflete na educação. “O último Censo Escolar nos mostra que apenas 1% de todas as escolas no país são acessíveis. E quando a gente está falando de acessibilidade não estamos falando só de arquitetura, estamos falando de acessibilidade de recursos para as pessoas com deficiência”, explicou Carolina. Ela lembrou que essa realidade reforça o mito de que o problema está nas pessoas com deficiência, quando na verdade é uma questão de desigualdade. Nas escolas, métodos avaliativos e práticas pedagógicas que trazem abordagens únicas reforçam essas desigualdades.
“Trazer uma educação inclusiva que reconheça as diferenças é trazer uma educação que vai fortalecer e desenvolver todas as habilidades que a gente precisa pra esse futuro que já está aí”. Carolina Videira
Ao falar sobre as narrativas literárias e como elas podem contribuir para os avanços na causa das pessoas com deficiências visíveis e não-visíveis, Carolina reforçou o papel da literatura no desenvolvimento da empatia. “A literatura ajuda a enxergar pelos olhos dos outros e a estabelecer uma conexão com essas pessoas. A educação inclusiva é um processo, e a gente precisa refletir quem é o aluno de inclusão. Na minha percepção todos são, porque se eu estou incluindo um, estou excluindo os outros. A gente precisa reconhecer que a escola é um espaço em que se perpetua desigualdades. Reconhecer isso é o primeiro passo pra buscar a justiça social”, finalizou a pesquisadora.
LEIA MAIS: Como trabalhar a empatia em sala de aula?