Fantasmas, vampiros, bruxas malvadas. Dê o primeiro grito quem nunca sentiu frio na barriga ao escutar uma história de terror. Assombrações - e criaturas sobrenaturais em geral - costumam exercer sobre nós, meros mortais, tanto medo quanto fascínio. E as crianças não estão imunes nem a uma coisa, nem à outra.
Não é à toa que muitas delas pedem “histórias de susto” - até antes de dormir, mesmo com o risco de encontrar monstros debaixo da cama…. Livros como a série da zumbizinha Mortina (Companhia das Letrinhas), que fazem sucesso entre crianças maiores, já revelam uma atmosfera meio aterrorizante logo de cara - uma coisa meio O Estranho Mundo de Jack (um dos filmes clássicos de Tim Burton), que pode causar estranhamento em crianças menores. Mortina foi criada pela italiana Barbara Cantini, com inspiração na família Addams. E a história começa em um Dia das Bruxas, quando a menina-zumbi, que queria muito ter amigos, encontra a oportunidade perfeita de se aproximar de crianças humanas - e nem precisar se disfarçar para isso.
Fingindo costume: Mortina, a menina-zumbi, que queria ter amigos humanos
Já em Olhe pela janela (Brinque-Book, 2022), de Katerina Gorelik , em que bruxas, fantasmas, monstros e até o lobo mau dão as caras, o susto nem sempre é óbvio. Na obra, plot twists acontecem em série, a cada vez que o leitor é convidado a olhar além do que se vê pela janela. Em alguns momentos, as revelações são mesmo arrepiantes - em outros, respiramos aliviados porque a cena não era tão assustadora, afinal.
Mas você já se deu conta de que sentir aquele frio na barriga, uma das reações que o medo costuma despertar, pode não ser tão ruim? Na verdade, pode até ser… gostoso. Afinal, se não fosse assim, as histórias de terror não fariam tanto sucesso. Mas, primeiro, é importante entender para quê serve o medo...
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A função do medo na vida real e nas histórias
No dia a dia, o medo aparece ao experimentarmos uma situação nova que o cérebro interpreta como uma ameaça. É esse alerta de perigo que prepara o corpo para reagir. E é por isso que sentir medo (e se permitir sentir medo) é tão importante. Sem isso, não aprenderíamos a nos proteger, desenvolvendo recursos importantes para a nossa sobrevivência, e viveríamos nos colocando em situações de risco. Funciona assim: quando detectamos um perigo, o organismo ativa alguns hormônios como a adrenalina e o cortisol, que geram uma explosão de energia - o coração acelera, os músculos recebem uma dose extra de glicose e até as pupilas dilatam em sinal de alerta máximo. Esse boom faz com que a gente se sinta capaz de qualquer coisa para enfrentar aquela situação perigosa. É a natureza nos ajudando a sobreviver, com uma dose extra de poder para escolhermos entre lutar ou fugir.
Só que apesar de o medo ser uma resposta a perigos reais, há muitas fantasias que também despertam temor. E há quem sinta prazer em consumir jogos, filmes e livros de terror, justamente para sentir aquele frio na barriga! A razão para isso é que experimentar essa emoção tão intensa em um ambiente controlado (ou no campo da fantasia) redireciona a explosão de energia que o medo pode causar para uma sensação euforia. É isso que gera um certo prazer. E dá até uma sensação de invencibilidade, trazendo confiança para lidar com outras situações e medos reais. Como escreveu Mark Twain: “Coragem é a resistência ao medo, domínio do medo, e não a ausência do medo”.
Carinha de vovó... mas era uma bruxa terrível - uma das supresas de Olhe pela janela (Brinque-Book, 2022)
Essa prática tem até um nome: "medo recreativo". E pressupõe se colocar em situações que despertem medo como uma forma de procurar satisfação. De acordo com uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Aarhus, na Dinamarca, que tem até um laboratório dedicado a pesquisar o “medo recreativo”, essa relação entre medo e prazer pode trazer benefícios como a melhora na capacidade de lidar com o estresse e a ansiedade. É como se estivéssemos brincando com situações que fazem soar nosso alerta de perigo e, de certa forma, nos ajudam a desenvolver ferramentas para lidar com cenérios críticos.
Para entender melhor, pense assim: você não pularia do alto de uma montanha. Mas talvez se arrisque na descida de uma montanha-russa - porque sabe que não há um perigo real. Ainda assim, teria que enfrentar a vertigem, para sair com a sensação de que "venceu" aquela queda. E provavelmente sentiria até uma sensação de "quero mais", mesmo com as pernas ainda tremendo.
O interesse por histórias e personagens aterrorizantes funciona dessa mesma forma: eles podem até assustar, mas a curiosidade e a satisfação de saber que, de certa forma, podemos transpor esses perigos, desperta a vontade de nos expormos a eles de novo e de novo.
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E os monstros com isso?
Não é segredo que, na mesma proporção em que assustam, bruxas, fantasmas e vampiros são criaturas fantásticas que nos fascinam - principalmente às crianças. E há uma explicação para isso. “Esses personagens quebram regras, fazem coisas ‘anormais’, dividem o bem do mal, geram medo e ao mesmo tempo intrigam. As crianças passam a explorar sensações que liberam adrenalina”, explica Ana Cristina Roma Corsini, psicóloga especialista em crianças e adolescentes.
Ela explica que esse medo - e esse interesse - está associado justamente a como as crianças se relacionam com a fantasia, algo que vai mudando de acordo com a idade. A fantasia faz parte especialmente da primeira infância, período que vai dos zero aos sete anos de idade, em que o pensamento ainda é mais autocentrado e não há capacidade de abstração desenvolvida - o que faz com o que real e imaginário se misturem. “Crianças são puras. Fantasiar é se desenvolver emocionalmente. Envolve brincar saudável, desenvolver habilidades cognitivas e sociais”, explica a psicóloga.
É justamento nesse momento em que os limites entre invenção e realidade ainda não ganharam contornos definidos que as crianças estão aprendendo a conhecer e enfrentar seus medos. E os monstros são uma parte importantíssima disso: é a partir dessas figuras que os temores mais abstratos ganham forma, facilitando o seu combate.
No fim da primeira infância, a fantasia deve diminuir devido ao que Ana Cristina chama de "aquisição de malícias”. Ela interpreta malícia como a capacidade de perceber e interpretar intenções ocultas. “Assim, as fantasias ficam encobertas, acontecendo apenas na imaginação”, resume. A partir daí, as crianças entendem que os monstros não passam de ficção. “Quando adquirem certo grau de malícia, de conhecimento sobre o que é possível ou não, o que antes provocava medo é motor de curiosidade e diversão!", conclui.
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Em caso de susto, não vire a página
E se a exposição ao medo, mesmo por meio de livros ilustrados, for demais? E se a criança chorar? Ou ficar impressionada? Ou começar a ter pesadelos? Pais e cuidadores costumam ter uma (justa) preocupação de não oferecer uma história para os filhos que seja excessivamente aterrorizante. Um primeiro passo, então, é observar a recomendação etária das obras - que pode fazer um primeiro filtro. Mas não há uma fórmula que funcione sempre - nem para todas as crianças.
“Cada criança difere sobre o que é mais assustador. Isso depende muito de como ela é criada, seu contexto social e familiar”, explica Ana Cristina. Para ela, há alguns parâmetros a serem observados. “De uma forma geral, o livro assustador demais contém atitudes e comportamentos tão disruptivos que as crianças não conseguem elaborar pela idade. Um livro assustador adequado é aquele que respeita a imaginação e a pureza das crianças. Onde um personagem do ‘mal’ não avance a capacidade infantil de conseguir derrotá-lo”, exemplifica a psicóloga.
Ainda assim, com todo o cuidado e mediação, é possível que a criança sinta medo de uma história. Ou fique impresisonada com uma cena ou com um personagem. “Caso isso aconteça é porque a criança não consegue elaborar a história de forma saudável, ou seja, não vê alternativas de deter ou derrotar o mal”, exclarece a psicóloga. É nesse momento que os pais têm um papel fundamental na hora de oferecer suporte, acolhendo e ouvindo a criança, para ajudá-la a criar condições para o enfrentamento daquilo que está assombrando-a.
Para fizemos uma seleção de livros de terror para crianças, com monstros nem tão monstruosos assim. Confira:
Mortina (Companhia das Letrinhas, 2019), de Barbara Cantini
No primeiro livro da coleção de Barbara Cantini, Mortina (Companhia das Letrinhas, 2019) a pequena menina-zumbi quer, como qualquer criança, fazer amigos. Mas por ser não tão normal (ou viva) como as crianças humanas, a tia Fafá Lecida não a deixa sair de casa. Para sua alegria, um dia a oportunidade perfeita aparece: o Dia das Bruxas, quando todos saem às ruas com as fantasias mais horripilantes. A saga continua em Mortina e o primo insuportável (Companhia das Letrinhas, 2019), Mortina e o amigo fantasma (Companhia das Letrinhas, 2020), Mortina de férias no Lago do Mistério (Companhia das Letrinhas, 2021) e, mais recentemente, Mortina e uma surpresa de arrepiar (Companhia das Letrinhas, 2023).
Olhe pela janela (Brinque-Book, 2022), de Katerina Gorelik
Pela janela vemos uma simpática senhora... mas na verdade é uma bruxa apavorante que prepara uma poção para transformar seus convidados em baratas! Neste livro interativo, a premiada autora e ilustradora Katerina Gorelik usa de todos os artifícios para brincar com a imaginação dos leitores, mostrando que há não apenas uma, mas várias maneiras de enxergar as coisas à nossa volta.
Onde vivem os monstros (Companhia das Letrinhas, 2023), de Maurice Sendak
Um clássico recheado de monstros! Quando Max veste sua fantasia de lobo, acaba fazendo tanta bagunça e malcriação que sua mãe o manda dormir sem jantar. Ao entrar no quarto, porém, Max embarca em uma viagem até a ilha onde vivem os monstros... e se torna rei de todos eles!
Sete histórias para sacudir o esqueleto (Companhia das Letrinhas, 2002), de Angela Lago
Sete casos de assombração (e de esperteza) colhidos na melhor tradição brasileira, narrados numa linguagem que recria o humor, o jeito e o ritmo mineiro de contar. Há esqueletos e cemitérios, defuntos falsos ou não, sonho e realidade em interferências mútuas de arrepiar. As ilustrações, também de Angela Lago, são quase esboços, sem carnes ou sem rosto, de uma transparência que tem tudo a ver com o intangível do além.
Samira o os esqueletos (Brinque-Book, 2022), de Camilla Kuhn
Quando Samira aprende sobre o corpo humano, ela começa a imaginar todos como esqueletos ambulantes. A garota então passa a evitar os colegas, mas ainda assim não consegue escapar do próprio esqueleto. Com a ajuda perspicaz da mãe, Samira percebe que ter um corpo cheio de ossos talvez não seja necessariamente um coisa ruim. Com ilustrações criativas e texto ágil, esse livro da norueguesa Camilla Kuhn mostra até onde pode chegar uma imaginação desenfreada.