Mamãe zangada ou cansada? A sobrecarga e a solidão que marcam o maternar

10/03/2025

Um dia, a mamãe pinguim gritou tão forte, mas tão forte, que o filho se desfez em pleno ar. E cada parte do pinguinzinho foi parar em um lugar diferente. Seus olhinhos foram para o espaço. Seu corpo afundou no mar. Seu bumbum foi parar no meio da rua. Enquanto suas partes tentavam, em vão, se reagrupar, a mãe zangada - e agora profundamente culpada - reaparece de cabeça baixa. Cabe a ela, afinal, juntar e costurar todos os pedaços do filho que se rompeu por seu próprio transbordamento.

Ilustração de 'Mamãe Zangada'

A mamãe pinguim deu um grito tão forte... Ilustração de Mamãe zangada (Companhia das Letrinhas, 2025)


O clássico Mamãe zangada (Companhia das Letrinhas, 2025), obra icônica de Jutta Bauer, uma das autoras infantis mais aclamadas de todos os tempos, acaba de ser relançado em uma nova edição, com tradução de Sofia Mariutti. Na história, enquanto as crianças se entretêm com o pinguinzinho desconjuntado, para as mães é difícil não sentir um nó no peito. Quem nunca explodiu com os filhos como a mãe pinguim? Quem nunca sentiu o peso de ser referência - e causar os traumas que potencialmente se tornarão assunto de terapia em um futuro talvez não tão distante?


Botar a culpa na mãe não é algo novo, embora permaneça atual. A própria psicanálise ficou estigmatizada como uma ferramenta para ajudar a lidar com os traumas gerados pelos pais, mas sobretudo pela figura materna. O livro A maternidade e o encontro com a própria sombra, lançado nos anos 2000, da autora e terapeuta argentina Laura Gutman, sem querer ajudou a popularizar essa ideia, correlacionando os sintomas dos bebês aos traumas maternos. “Na época, a obra foi uma grande referência porque trazia a psicologia de um jeito palatável. Só que produziu um efeito nas mães de muita culpa, porque relacionava de uma forma direta demais todas as sombras maternas, ou seja, a experiência da mulher como filha, que apareceria como sintomas nos próprios filhos”, explica a psicóloga, psicanalista e especialista em saúde mental materna Juliana Vieira Tfauni, e uma das editoras do livro Saúde Mental Perinatal (Manole, 2025).


Para ela, essa leitura  pode ser rasa a partir do que a própria psicanálise fala porque existem mais camadas. “Há aquilo que os pais fazem com as crianças. Mas também há o que as crianças fazem com aquilo que os pais fazem com elas”, explica Juliana. Para ela, no entanto, há uma pergunta fundamental a se fazer: por que a centralidade do cuidado ainda pertence à mãe?

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Mães exaustas são mães zangadas: por que a centralidade do cuidado é feminina?


Qualquer pessoa cansada tem um nível de tolerância menor, fica mais reativa. E não é coincidência que as mães pareçam estar à beira de um ataque de nervos. Mães exaustas têm compartilhado seu descontentamento dentro e fora das redes sociais, em um movimento que chama atenção para a maternidade real. Uma pesquisa realizada no Brasil com 872 mulheres de todas as regiões mostrou que 66% das mães classificam a própria saúde mental como péssima, ruim ou regular. E 94% revelou se sentir sobrecarregada de cinco a sete dias na semana. 


E não estamos falando apenas da parte prática - embora a própria pesquisa tenha mostrado que 78% das mulheres são as únicas a realizarem as tarefas domésticas ou pelo menos as que fazem a maior parte do trabalho. A maior parte da carga mental, ou seja, do gerenciamento das tarefas - que dizem respeito aos filhos, à casa e à vida familiar - ainda recai sobre as mães. Marcar o médico, comprar o presente de aniversário para o amiguinho da escola, tirar da gaveta as roupas que não estão servindo, pensar se tem o que mandar de lanche para a semana são apenas alguns exemplos da infinita lista de tarefas cotidianas. “A carga mental é um sintoma social e de uma família que foi constituída dessa forma a partir de determinações de gênero e papeis sociais construídos”, explica Juliana. Assim como a carga mental, a culpa por não dar conta de tudo também é um sintoma dessa mesma lógica.

Ilustração de Mamãe Zangada

... que o piguinzinho se despedaçou. A mamãe pinguim também é uma mãe imperfeita - e talvez muito cansada. Ilustração de Mamãe zangada (Companhia das Letrinhas, 2025)


“Quanto mais exigimos sermos mães perfeitas, piores mães somos. Aumentamos nosso nível de estresse e com isso ficamos mais sensíveis e reativas - e qualquer coisa nos faz explodir”, explica a psicóloga Nanda Perim, do perfil @psimama do Instagram. Não, a mãe do pinguim não está sozinha. Mas assim como as mães humanas, seus gritos só revelam o que deveria ser óbvio: mães não são perfeitas. Mães erram. Mães também perdem a paciência. Mães têm dias bons e dias difíceis. Esse, aliás, é o conceito de humanidade compartilhada da psicóloga americana Kristin Neff, que Nanda tem tomado como base para seus estudos sobre culpa materna. “Quanto mais assumirmos e acolhermos o fato de que, sim, seremos mães imperfeitas, e que essa imperfeição faz parte da nossa maternidade, vamos conseguir agir de uma forma melhor”, diz Nanda. 

 

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Calma, não precisa ter medo de traumatizar a criança


Embora muitos pais sejam esmagados com a culpa depois de soltarem uns gritos e agirem de forma pouco (ou nada) gentil, não é isso que vai deixar seu filho traumatizado. 


O efeito da fala de um outro não é um despedaçamento." Juliana Vieira Tfauni, psicóloga, psicanalista e especialista em saúde mental


A palavra trauma, aliás, vem sendo usada com pouquíssimo critério, embora não seja algo banal. O trauma pode ser resultado de uma exposição a uma situação de estresse, que gerou medo, angústia e que deixou uma marca por não poder ser plenamente processada. Essa experiência de estresse pode ser pontual ou crônica, quando há exposição a uma série de eventos traumáticos de forma prolongada. Um trauma para a psicologia é o que divide a experiência do sujeito em dois tempos: antes e depois. É algo que produz um efeito tão grande que deixa uma cicatriz.


“Uma criança que está em um ambiente estressante vai alcançar certos níveis de estresse, que em algum momento vão abaixar, porque ela vai ter acolhimento. Em uma situação de estresse tóxico, vamos considerar que essa criança vai estar sempre submetida a situações de vulnerabilidade e que não vai receber acolhimento”, explica Juliana. Um ambiente estressante não é só aquele em que um cuidador perde a paciência. Tentar se encaixar em uma nova turma de amigos, estudar para uma prova, ter medo de passar vergonha na frente da turma,  todas essas são situações que também podem elevar os níveis de estresse - e que não por isso vão deixar traumas. Já uma situação de estresse tóxico pressupõe vulnerabilidade: exposição a violência, insegurança, negligência às suas necessidades. E nessa circunstância, a criança não tem para onde correr.

https://www.companhiadasletras.com.br/livro/9786554850940/mamae-zangada-ampliada?utm_source=blog-da-letrinhas&utm_medium=blog-letrinhas&utm_campaign=mamae-zangada-ampliada&utm_id=Mamae-zangada-ou-cansada%3F-A-sobrecarga-e-a-solidao-que-marcam-o-maternar+

Mais importante do que errar é ensinar às crianças a possibilidade de reparação, como faz a mamãe pinguim em Mamãe zangada (Companhia das Letrinhas, 2025)


Nanda lembra de uma frase de Gabor Maté, médico e autor húngaro-canadense especialista em trauma, que diz: “O trauma não está no que você vive, mas principalmente no quão solitário você está com o que você viveu”. “Isso nos faz pensar que a dor em si é inevitável. Mas a diferença entre você viver algo difícil e viver algo dilacerante com muita frequência está no quão desamparado você está”, pontua Nanda. É por isso que o acolhimento é considerado o grande diferencial na forma como a criança vai processar uma situação de estresse.


Ao invés de um ter medo obsessivo de traumatizar a criança, é melhor ter foco em construir uma conexão muito forte com ela e estar lá sempre. Fazer reparações, pedir desculpa, acolher, amparar, dar a certeza de que você estará ali, independente do que acontecer”, Nanda Perim, psicóloga


Para Juliana, a possibilidade de ver os pais lidando com as próprias emoções - inclusive as difíceis - pode ensinar muito aos filhos. Ou seja: tão importante quanto tentar ajudar a criança a se recompor, como a mãe pinguim faz no livro, é costurar os próprios pedaços primeiro e estar inteiro para reconhecer e corrigir atitudes.


Os pais se despedaçarem, se reconstruírem e poderem reparar seus atos ensina às crianças que elas também são capazes de se auto regular." , Juliana Vieira Tfauni, psicóloga, psicanalista e especialista em saúde mental


A autorregulação é a capacidade de simbolizar alguma coisa: às vezes eu tenho vontade de matar, mas não mato. Tenho vontade de bater, mas não bato. Encontro outras formas de expressar, de manifestar meu descontentamento pr um caminho saudável. 


Saúde mental materna, políticas públicas e autocompaixão


Para Juliana, “não existe saúde sem saúde mental perinatal”. Tanto que a saúde mental materna enfrenta o maior período de vulnerabilidade durante a gestação e o puerpério. E não é surpresa que o que se mostra mais efetivo em termos de impacto positivo na saúde mental da mãe é o manejo de rede de apoio. “Isso nos faz pensar que o ambiente é totalmente implicado no desenvolvimento dessa mulher”, explica. Puerpérios mais tranquilos, planejados, em que os pais tiraram licença junto com a mãe durante pelo menos seis meses, dividindo os cuidados podem fazer toda a diferença - ainda que infelizmente não seja uma possibilidade para todos, lembrando que a licença-paternidade garantida no Brasil é de apenas cinco dias corridos. 


Não tem mágica: a solução ideal para diminuir  sobrecarga das mães passa por políticas públicas capazes de tornar a experiência do maternar menos centralizada e solitária, como a criação de espaços comunitários, a circulação do cuidado e, claro, um olhar transversal, que contemple questões de raça, gênero, classe econômica e recortes do território. Nem toda mãe tem um parceiro(a) para dividir a carga, a maioria das famílias não têm condição de bancar uma rede de apoio paga.


Ainda assim, olhando para o que pode ser feito dentro das famílias, é possível, do ponto de vista prático, pensar em algumas soluções de ordem prática para tentar tirar a mãe dessa perspectiva central - e exclusiva - de ser responsável pelo cuidado. Juliana conta que aprendeu muito observando as dinâmicas de casais LGBT, especialmente quando há dois pais. “Em casais de homens, a gente tem menos essa determinações de gênero que contribuem tanto com carga mental quanto com a divisão de tarefas, em que mulheres são as cuidadoras e responsáveis por amamentar e os homens ficam com a função de trabalhar e prover. Dá para ver um homem falando de um bebê da mesma forma que uma mulher falaria, sabendo tudo, é lindo de ver”, conta.


Nanda também ressalta a importância de ficar de olho no próprio saldo emocional. “A ideia é imaginar que cada um de nós tem um tanque que se esvazia com estresse, cansaço e que se enche com atividades que gostamos, com nos sentirmos amados, vistos. Cada um precisa identificar o que é depósito - ou seja o que enche - e o que é saque - ou seja, o que esvazia esse tanque”, explica. Ela recomenda fazer uma lista tanto dos saques quanto dos depósitos, para entender o que é possível incluir ou evitar na organização da rotina. Por exemplo, se um saque é sair atrasado de casa todo dia, como fazer para minimizar essa ocorrência? Acordar as crianças mais cedo? Deixar os lanches da escola prontos na véspera? ” É preciso fazer essa análise lúcida e intencional para manter o tanque cheio, evitando estressores e incluindo o que te faz bem. Você precisa de um dia sem as crianças? Precisa encontrar as amigas uma vez na semana? Tem que mexer na organização para que isso aconteça”, reflete.


Mas para Nanda, o principal para as mães manterem a saúde mental é aprender a exercitar a autocompaixão. “Imagine o que você diria para uma amiga, sua melhor amiga, se ela viesse te contar que acabou perdendo a paciência com o filho? Você a acolheria, você diria que ela está fazendo um ótimo trabalho, que é maravilhosa, que está dando duro no trabalho“. O convite é para que cada mãe possa ser gentil consigo dessa mesma forma.


Mais dicas para aliviar a carga da mãe - e diminuir a culpa:


passar a bola para o parceiro ou outro cuidador: percebeu que você está em um dia difícil? A paciência está curta, você está mais irritada? Peça ajuda. Vale até deixar combinado com o/a parceira/o um sinal ou uma palavra pedindo substituição;
dividir a carga mental e as tarefas com o/a parceiro(a): Nanda recomenda fazer um grupo no Whatsapp só para isso. A ideia é primeiro registrar tudo o que precisa ser feito: compras da semana, manutenção no carro, matrícula da criança no inglês… E depois dividir tudo por igual - se a mãe é quem vai marcar a consulta no pediatra, quem tem que marcar o dentista é o pai.
contextualizar seus erros: você está mais sensível ultimamente? Mais reativa? Olhe ao redor e perceba tudo com o que você está lidando. É uma fase em que você está sendo mais cobrada no trabalho? Se o filho tem acordado a noite inteira? Tem alguma questão na família incomodando? Preocupada com grana? Colocar a falta de paciência em um contexto pode ajudar a pegar mais leve com você mesma. 

E lembre-se: mostrar ao seu filho seu lado mais humano não vai deixá-lo em pedaços. Mas, com sorte, talvez, ele descubra que a mãe perfeita não existe. E, assim, mais para frente, poderá acolher com mais carinho os próprios erros.

(Texto: Naíma Saleh)

 

 

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