Marilda Castanha dá nome ao indizível em seu novo livro

29/04/2025

 

“Seja gente, coisa ou bicho, tudo e todos têm um nome.”

Essas são as primeiras linhas de Meu nome (Companhia das Letrinhas, 2025), o mais recente lançamento da autora e artista mineira Marilda Castanha. Na história, acompanhamos um menino vivendo o que nenhuma criança jamais deveria experimentar: a guerra. Em uma narrativa sensível, percebemos o contexto muito mais pelas imagens que pelo texto. A razão de se “ter um nome” e a importância disso marcam o enredo e, num tempo poético, vamos seguindo os passos da criança, que percorre cenários cotidianos, agora marcados por soldados e tanques, enquanto encontra no próprio nome a conexão com a sua terra, em memórias, lembranças e esperança. Com força e delicadeza, o livro revela a importância dos significados que cada nome carrega e do imperativo de nomear para que seja possível existir - e resistir. 

Ilustração de 'Meu nome'

Todo nome significa algo é dá contorno a cada existência - até de quem ainda não nasceu. Ilustração de Meu nome (Companhia das Letrinhas, 2025)

O disparador para a obra veio de uma notícia sobre as crianças da Palestina. Marilda viu um vídeo que viralizou e mostrava algumas delas escrevendo os próprios nomes no corpo, como forma de identificação se o pior acontecesse - pois tantas vezes acontece. Em março, a Organização das Nações Unidas estimou que mais de 18 mil crianças foram mortas em Gaza desde o início dos conflitos, em outubro de 2023. O número é maior do que o total de crianças mortas em 4 anos de guerra se somarmos os conflitos que ocorrem no mundo todo. “Eu fiquei tão atônita, tão indignada, comecei a chorar. Eu sei que há tragédias no mundo todo, mas aquilo me tocou muito. Minha próxima pergunta foi: e agora, o que eu vou fazer com isso? Com essa dor, esse espanto? E a história veio quase inteira”, conta a autora.

Não à toa, o posfácio pontua que o livro foi criado “em nome e memória de todas as crianças que foram (e continuam sendo) vítimas das atrocidades das guerras.”  Mas Meu nome não é apenas uma história sobre conflito e refúgio, morte e resistência. É um manifesto pela vida e, acima de tudo, pela infância. Há tanques de guerra, mas também há crianças jogando bola. Há cercas de arame farpado, mas também há a escola. Há soldados, mas também há pipas colorindo o céu. É um retrato da vida que pulsa e cresce e se expande mesmo nos cenários mais desoladores, registrada pelos olhos da infância. “Eu queria fazer algo que registrasse além do meu desconforto, mas que contasse a vida dessas crianças”, pontua a autora.

 

Quando a gente trabalha com a infância, trabalhamos com coisas que são verdadeiras para nós, com aquilo que pensamos. Por isso, tomar posição é muito importante”. Marilda Castanha

 

A autora conta que foi a partir da leitura de obras da chilena Maria José Ferrada que percebeu como a literatura pode ser uma tomada de posição. “Os livros dela mostram que ela não está vendo a história passar. Ela toma posição”, reflete. 

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Investigação e símbolos na riqueza narrativa

A pesquisa foi um passo importante para a produção da obra. Marilda assistiu a muitos vídeos da Palestina, visitou sites, consultou livros. “Eu fui anotando os bichos que existem na região, descobri que a melancia é um símbolo da resistência porque tem as cores da bandeira palestina, o que virou uma página. O lenço palestino, que está presente nas vestes do pai e no chão (das ilustrações), e elementos da arquitetura. Não procurei ser fidedigna, mas trazer o que fui descobrindo”, revela a autora. O trabalho investigativo trouxe uma riqueza simbólica que aporta uma grandeza ainda maior às ilustrações, que misturam pintura e colagem. 

Logo no início, os pássaros enjaulados fazem alusão a tantos povos que tiveram sua liberdade tolhida. A oliveira, símbolo da vida e da paz, também aparece na paisagem palestina e nas páginas pintadas com uma paleta seleta, que começou enxuta, com vermelho e preto no projeto inicial, mas foi ganhando tons terrosos, que fazem lembrar a aridez dos territórios da região. Os verdes despontam só no final como um chamado para a esperança de tempos melhores estampando a pipa com as cores da bandeira palestina. 

Ilustração de 'Meu nome', de Marilda Castanha

Mesmo em meio ao medo e à tristeza, a infância resiste nas brincadeiras 

Em seu processo investigativo, a autora também viu desenhos que as próprias crianças palestinas fizeram sobre a guerra. “A quantidade de desenhos em que aparecem tanques é impressionante. Eu já estava com a ideia de colocar guardas grandes em relação ao menino, de usar essa escala para dar ideia de monstruosidade. E há alguns desenhos das crianças que têm essa escala: com guardas enormes e crianças pequenas”. 


A nossa opção pela infância tem que ser desterritorializada”, Marilda Castanha

 

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A escrita dos nomes entre a arte e o texto

Ilustração de 'Meu nome', de Marilda Castanha

Nomes são muito mais do que sons e letras como reforça Meu nome


“Quando vi o site da Al-Jazeera, encontrei outra coisa muito dolorosa: são mais de 15 mil nomes de pessoas [mortas no conflito]. É uma experiência… Esse apagamento de um povo é muito doloroso de ver. Eu sou neta de imigrantes italianos. Sou casada com o Nelson (Cruz), que é afrodescente. Ninguém é daqui da terra, nenhum de nós é indígena. Essa nacionalidade é inventada”, afirma a autora. 

Os nomes que ela viu deram início a outra etapa do processo de pesquisa para o livro: a investigação das caligrafias. A autora escolheu alguns nomes da longa lista do site, investigou seus significados e imprimiu-os em folhas de papel, para mais tarde desenhá-los com a “peninha”, um bico de pena menor. Um trabalho preciso, delicado e imensamente significativo, entre a escrita e a arte, mesmo território em que a autora transita. “Essa parte foi uma outra imersão. Não sou uma mulher muçulmana, mas queria colocar no meu trabalho uma aproximação, uma empatia. Precisamos ter empatia pelo sofrimento, é uma forma de falar: estamos juntos”, conta a autora.

Marilda está desenvolvendo o seu mestrado e conta que a produção desse projeto traz uma das reflexões presentes em seu projeto de pesquisa: quando estamos falando em bosques ficcionais, o que queremos dizer? O conceito de bosque ficcional aparece em um conto de Jorge Luis Borges, que escreve ‘o bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam’  e é desenvolvido na introdução do livro Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção (Companhia das Letras, 2024) de Umberto Eco. Um bosque ficcional é uma metáfora para o ambiente penetrado pelo leitor que assim como um bosque tem diversos caminhos possíveis de serem trilhados, na fronteira entre a realidade e a ficção.

Marilda lembra ainda de um curso que fez com o ilustrador mexicano Gabriel Pacheco que marcou sua forma de fazer e pensar a literatura. “Ele disse: ‘não importa que você faça ilustração, importa que ela te faça existir’. Isso virou para mim uma chave na hora de ser autora de imagens e de texto. Fazer um desenho, ilustrar, é um ofício. Mas eu interpretei que o que importa é a posição que você vai tomar nesse ofício”. 

Pelo texto, pelas imagens e pelo diálogo que acontece no entrelaçamento dos dois em um projeto gráfico potente, Marilda vai conduzindo o leitor por esse bosque árido, que devolve um tanto da poética perdida do mundo que conhecemos, com beleza e com dor. Sem preencher todos os espaços, mas dando nome ao que é preciso ser dito - e lembrado - ,  Meu nome ajuda ajuda a dar contornos ao presente, tão difícil, justamente, de nomear. Ao mesmo tempo que nos oferece linguagem para o difícil, celebra uma infância em seu estado mais puro, lembrando ser este um direito de todas as crianças.

 

(Texto: Cristiane Rogério e Naíma Saleh)

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