Como criar cidades mais amigáveis para crianças?

19/05/2025

É verão na cidade. A multidão se espreme nas calçadas. Homens de capacete trabalham em uma obra fazendo um barulhão. A sirene toca estridente. O asfalto estala com o calorão. O cenário é Nova York, mas poderia ser São Paulo ou muitas outras metrópoles.

Em Cachorro quente (Companhia das Letrinhas, 2025), de Doug Salati com tradução de Lígia Azevedo, um cachorro protagoniza uma jornada hercúlea para ver o mar, junto com sua dona. Na coleira, ele cruza a cidade caótica, cheia de gente, de carros, de ruídos, onde tudo acontece em excesso e os sentidos se perturbam. Ah, se ele tivesse pelo menos um lugarzinho para se sentar…

A narrativa, contada em quadrinhos, é a primeira obra autoral de Salati, que já coleciona um vasto portfólio de livros ilustrados, e se tornou um best-seller do New York Times. A experiência do cachorrinho basset - um salsichinha, como chamamos por aqui - se assemelha de muitas formas à vivência das crianças nos grandes centros urbanos, onde tudo parece ser demais - menos a sombra, a calma e o silêncio. 

Falta lugar para correr, para brincar, para poder circular sem precisar se desviar de um mar de gente - ou de carros. Não é à toa que as crianças, sobretudo as de classes mais privilegiadas, têm ficado confinadas. Dentro de apartamentos, em condomínios fechados, cercadas pelos muros da escola. 

Mas será que foram as crianças que saíram das ruas ou as ruas é que não acolhem mais os pequenos? 

Para Paula Mendonça, especialista em educação, natureza e culturas infantis do Instituto Alana, “quando tiramos as barreiras que as cidades impõem, as pessoas voltam para as ruas”. O Instituto Alana encabeça dentre várias iniciativas o programa ‘Criança e natureza’, que surgiu justamente do reconhecimento de que crianças em cenários urbanos vivem de uma forma muito confinada a ambientes fechados. Esse confinamento impacta diretamente não apenas a forma de se relacionar com o entorno, mas também o desenvolvimento infantil. O aumento dos níveis de obesidade, o prejuízo ao desenvolvimento do sistema imunológico (uma vez que a imunidade vai se construindo a partir do contato com microrganismos presentes na natureza), e a miopia precoce, por falta de contemplar o horizonte e desenvolver a habilidade de enxergar no longo alcance, são só alguns dos prejuízos. Isso sem falar no impacto do desenvolvimento de habilidades motoras, já que dentro de espaços fechados não há desafios como subir em árvores, percorrer terrenos com diferentes relevos e desviar de obstáculos. “Perde-se ainda a convivência. Uma pracinha é um lugar de encontro, em que é possível fazer uma brincadeira junto, dividir um brinquedo, aprender habilidades sociais. O confinamento ipacta o desenvolvimento integral das crianças”, explica Paula.


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Mas por que as crianças não estão mais nas ruas?


Não há uma resposta simples. 

A falta de segurança talvez seja o que primeiro vem à mente, mas é preciso considerar vários outros fatores. “Sim, existe uma baixa sensação de confiança na cidade - que antes era um lugar de encontro, pelo menos há uma geração. Mas também há uma falta de planejamento urbano”, explica Paula. 

A especialista explica que a rua é por essência esse espaço que disputa entre a convivência social e a circulação dos carros, em que pouco se considera a presença das crianças. “A cidade, muitas vezes, é pensada de uma forma a privilegiar quem trabalha, quem gera renda. É preciso ter velocidade no trânsito, acompanhar o fluxo dos negócios. E isso acaba marcando o espaço urbano”, explica. Em outras palavras, o ritmo exigido pelo mundo do trabalho não é compatível com o das crianças. É possível entender isso na prática com alguns exemplos simples. Em uma cidade pensada para crianças, semáforos ficariam mais tempo abertos para conseguir atravessar com calma; os carros circulariam em menor velocidade nas áreas urbanas, as calçadas seriam mais largas para ampliar a circulação a pé. 

Para a socióloga Lourdes Atié, outro fator que explica o esvaziamento das ruas é o papel centralizado que a escola passou a ocupar. “As crianças saíram da rua por segurança e porque a escola passa a oferecer tudo - é lugar de socializar, de entrar em contato com áreas verdes… Costumo dizer que o tamanho do muro que cerca as escolas, sobretudo as privadas, é muito revelador sobre como a criança vai se relacionar com a cidade”, explica. Lourdes acompanha há 30 anos o Movimento das Cidades Educadoras, uma associação internacional que está presente no mundo todo, cuja sede está em Barcelona, Espanha, e que pensa formas de fazer com que a educação transcenda os muros das instituições escolares. Para Lourdes, além da escola, enquanto estrutura, representar essas barreiras para a cidade, todo o período dedicado à escolarização, que muitas vezes inclui também uma porção de atividades extracurriculares, sem tempo livre para o brincar e para o ócio, também dificulta esse apropriar-se do território. “Enquanto está na escola, a criança não é mais criança: é estudante. Muitas vezes, nem dentro da escola as crianças podem circular livremente”, reflete.


Se a criança não for realmente cidadã, ela vai estar sempre dentro de um cercadinho. Você vai fazer um lugarzinho para ela, um parquinho, um espacinho, mas ela não está na cidade”, Lourdes Atié, socióloga

 

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Na prática: como construir uma cidade mais amigável para as crianças


“Uma cidade não pode ser construída para as crianças, tem que ser construída com elas. Se não for assim, fica parecendo uma concessão”, explica Lourdes. Isso implica em uma ação fundamental: ouvir o que as crianças têm a dizer. Lourdes cita o exemplo de Rosário, na Argentina, que é a capital do Movimento das Cidades Educadoras na América Latina. Lá, há uma prestação de contas para comitês de crianças, que frequentam a câmara de vereadores, em um modelo interessante de participação cidadã: elas podem apresentar projetos próprios para melhorar a cidade ou podem apoiar projetos de vereadores que já existem. E não, as propostas das crianças não se reumem a construir parquinhos. 


Aliás, não é raro que lugares que se dizem pensados para crianças se limitem a pensar na diversão, como se com a instalação de um escorregador ou de uma gangorra fosse suficiente. Só que mesmo quando se fala da construção de espaços brincantes, como um parquinho, o planejamento precisa ir muito além da instalação dos equipamentos. Como é o acesso? A calçada é larga e uniforme para um carrinho de bebê poder chegar? Há sombra? Há uma fonte de água potável? Há um espaço para que os cuidadores também possam estar e descansar? “Um parquinho mais amigável para crianças também precisa ser amigável para os cuidadores”, pontua Paula.

 

 Falta um comitê de crianças que possam se colocar. As crianças precisam ser escutadas, elas sabem o que querem: mais natureza, mais beleza, coisas da ordem do sensível". Paula Mendonça, especialista em educação, natureza e culturas infantis do Instituto Alana

 

Para exemplificar como uma cidade pode ser mais amigável para as crianças, Lourdes conta sobre a experiência de seu neto, que mora em Barcelona. “A criança brasileira está no privado o tempo inteiro, ela não circula na cidade. O carro deixa a criança na porta da escola e pega a criança na porta da escola. Meu neto anda por todos os lugares, conhece os caminhos, anda de metrô, sabe por onde ir e em qual estação tem que descer. Em Barcelona, as crianças saem do colégio no fim da tarde e vão brincar nas praças, nos bosques espalhados pela cidade", conta.

Quando a natureza e os espaços brincantes estão acessíveis, todos os usufruem. Dessa forma, uma escola não precisa ter um bosque, encerrado entre seus muros, para proporcionar contato com a natureza - um contato tão importante para crianças e adultos. Em Minha árvore de estimação (Brinque-Book, 2025), da canadense Marie-Louise Gay, a menina Lili se apaixona por uma floresta e pede uma árvore de presente de aniversário. A árvore ganha o nome de Jorge e vai viver com a menina em seu pequeno apartamento no meio da cidade. O desejo de levar seu amigo para explorar o mundo faz com que Lili coloque Jorge em uma caixa com rodas e saia com ele pela cidade, levando beleza, frescor e sombra por aí. Lili só não fazia ideia de que seu gesto desencadearia um movimento capaz de mudar - e colorir - a paisagem: uma bela metáfora sobre a influência da natureza em nós.

 

 

Paula também chama a atenção para a necessidade de distribuir as áreas verdes pelo bairro. “Quando pensamos na concepção de espaços para brincar e aprender, eles partem de um olhar de regeneração das paisagens para a composição do parque, que não é só um brinquedo”, conta. Os brinquedos propostos nos projetos do ‘Criança e Natureza’ são espelhados em modelos de outros países e também nos povos indígenas e quilombolas. São feitos a partir da madeira, com formas mais orgânicas.”Formamos uma paisagem para o brincar, que traz essa concepção de incorporar arte, remeter à relação com a natureza e propor mais desafios ao corpo”, explica. Assim, cria-se um ambiente que estimule a imaginação e a permanência das crianças, ao invés de oferecer apenas estruturas fixas e repetitivas.

Para a especialista, planejar uma cidade para crianças começa por levar em conta a estrutura dos bairros. Para tornar possível a circulação à pé, é preciso pensar em distância de até 500 metros para crianças pequenas e no máximo 1000 metros para crianças maiores. Nesse perímetro é preciso ter acesso a escola, praça, biblioteca, áreas verdes -  o que facilita o acesso de todos. É também preciso levar em conta a perspectiva da criança ao estar na cidade - por exemplo, colocando as sinalizações em uma altura que também seja acessível para ela. 

 

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Uma cidade amigável para crianças é melhor para todos

Não é difícil intuir que uma cidade feita para caminhar com segurança, em um ritmo menos frenético, com mais áreas verdes e praças seja algo bom não apenas para as crianças. “Uma calçada boa fica melhor para idosos e também para cadeirantes. Se você pensa na segurança, uma cidade mais iluminada também fica melhor para as mulheres. Se você aumenta o tempo de travessia do semáforo, de novo idosos e outros grupos com mobilidade reduzida ganham”, explica Paula. Mas ainda é possível ir além. 

A especialista cita o exemplo das cidades de Griesheim e Brühl, na Alemanha, conhecidas como “cidades para brincar e sentar”. “A grande ação nessas duas localidades foi identificar lugares de fluxo das crianças e colocar brinquedos e instalações para que elas fossem se divertindo no caminho. A ideia era acompanhar o percurso, instalando protótipos para atuarem como barreira entre a calçada e os carros e que também servissem para as crianças brincarem - subindo, pulando”, conta Paula. Ou seja, criava-se uma zona de segurança para as crianças poderem caminhar e se divertirem ao mesmo tempo. Acontece que depois de instalados esses protótipos, notou-se que eles também eram interessantes para os idosos, que podiam se apoiar ali para descansar. A partir daí, passaram a ser desenvolvidos protótipos brincantes para as crianças, mas que também fossem “sentáveis”.

 

É urgente pensar em ocupar a cidade não como uma questão de segurança pública, mas de direito. A cidade não deve ser um lugar de passar, mas um lugar de estar” Lourdes Atié, socióloga

 

Quando perguntadas sobre como definir uma cidade mais amigável para crianças, tanto Paula quanto Lourdes citam o termo 'autonomia'. Para Paula, é preciso "garantir às crianças autonomia, para que ela possa fazer cada vez mais coisas sozinhas e com segurança". Para Lourdes, "uma cidade amigável é aquela em que a criança tenha autonomia de circular, e tenha a oportunidade de entender o mundo a partir de onde ela está, de viver experiências". A autonomia pressupõe a capacidade de tomar decisões, de agir sem depender dos outros. Em uma cidade verdadeiramente amigável, cada um tem direito de decidir e circular, de explorar e se apropriar dos espaços sem barreiras, sem precisar pedir licença, sem pedir concessões. Isso serve para todos - os grandes e os pequenos.

 

(Texto: Naíma Saleh)

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