Correio de Barcelona: Como você se chama?

31/01/2017

Juan Pablo Villalobos, autor de Festa no covilSe vivêssemos em um lugar normal Te vendo um cachorro, volta com sua coluna mensal no Blog da Companhia. Em "Correio de Barcelona", o personagem Juan Pablo Villalobos troca correspondência com seu amigo brasileiro, Zé, sobre sua rotina de escritor. 

* * *

E aí, Zé? Acabou bem a festa da virada? Desculpa ter ido embora tão cedo, a gente tinha que pegar o avião pra voltar pra Barcelona no dia primeiro mesmo, e com as crianças é um pesadelo viajar de ressaca. Cara, a gente chegou aqui na segunda e na terça as crianças já tinham pego piolhos de novo, acredita? O Júnior começou a coçar a cabeça cinco minutos depois de voltar do parque. Pqp. E, lógico, imediatamente passou os bichinhos para a Chuchu. Porra, você vai morar na Europa achando que aquilo é o primeiro mundo e logo resulta que o pessoal tem hábitos de higiene medievais. Ninguém merece, Zé, a Doutora já criou um grupo no WhatsApp com os amiguinhos das crianças pra tentar trazer pra Catalunha o conceito revolucionário de lavar o cabelo. Mas os chimpanzés despiolham melhor que os catalães, meu, juro que é uma batalha perdida.

E você não sabe o que aconteceu no voo de volta para Barcelona... Lembra que te contei que a gente tinha achado umas passagens bem baratinhas na Air Marrocos? Cara, você não vai nem acreditar como foi a escala em Casablanca. Até esse momento tudo tinha saído certinho, fora essa musiquinha horrível que colocam no avião antes de decolar e logo depois de pousar. Mas quando a gente passou no controle de imigração lá em Casablanca foi que veio o transtorno. O agente pegou meu passaporte e ficou um tempão tentando escaneá-lo e não conseguia. Daí chamou outra pessoa e logo outra e de repente tinha uma convenção de agentes migratórios brincando com meu passaporte. Daí eu falei, em meu melhor inglês com sotaque Diego Luna em Rogue One:

— Tudo bem?

Um dos agentes levantou o olhar do meu passaporte, fitou os lados, bufou e falou:

— Tudo, só que seu passaporte é falso.

Nesse momento, a simples menção da frase "fake passport" ativou um dispositivo de segurança do cacete: apareceram policiais, militares, uns caras de terno com arrogância nível James Bond. Um deles me perguntou:

— Como você se chama?

Aí eu olhei pra meu passaporte, li meu nome (tudo estava ficando muito confuso, eu não queria errar) e falei:

— Juan Pablo Villalobos Alva.

— Tem certeza? — respondeu.

— Tenho, sim — falei.

— O passaporte é falso — me disse, olhando bem no fundo dos meus olhos, como que tentando me fazer confessar ou que eu começasse a chorar.

— Os vistos também são falsos? — perguntei, porque no passaporte tenho o visto americano e o visto canadense.

O sujeito revisou os vistos e solicitou uma lupa para analisar as costuras do passaporte. Nesse momento, Zé, juro que pensei: já era.

Imaginei que ia ficar lá num calabouço e que nem um milhão de assinaturas no change.org iam me tirar daí. A Doutora aproveitou que os caras estavam entretidos e se aproximou.

— Você quer falar alguma coisa pra mim? — me perguntou.

Fitei os olhos dela e pensei que deve ser foda mesmo se casar com um mexicano.

— Fala agora — me disse —, depois pode ser tarde demais.

Aí a Chuchu achou que era o momento de contribuir pra aumentar a confusão geral:

Papi, ¿tú cuántos pasaportes tienes?

Um dos James Bond marroquinos abandonou a análise da gramatura do papel do meu passaporte e olhou pra nós.

Yo sólo tengo uno, mi amor — falei —, tú tienes tres porque tienes tres nacionalidades, pero yo sólo soy mexicano.

A minha resposta pareceu acalmar o agente e eu aproveitei pra dizer baixinho pra Chuchu e pro Júnior:

— Aqui no Marrocos a gente vai falar em catalão, tá?

¿Por qué, papi? — a Chuchu perguntou.

— É uma brincadeira — falei —, é nossa língua secreta.

Pues tu catalán es pésimo — falou o Júnior, que como você deve ter percebido está chegando à adolescência aos dez anos.

— Tem certeza? — me perguntou a Doutora.

— De quê? — falei.

— Tá tudo bem? — perguntou. — Posso ficar tranquila?

Ia falar que sim, claro, que podia ficar tranquila, mas porra, Zé, aquilo era Marrocos e eu era um mexicano viajando do Brasil pra Barcelona! Que era mais simples acreditar, na verdade? Que eu era um traficante utilizando a família como álibi ou que eu era um escritor mexicano casado com uma brasileira, com dois filhos meio mexicanos meio brasileiros meio catalães, voltando das férias na casa da sogra? Escritor? Sério? Escritor mexicano? Escritores mexicanos existem? E como os escritores mexicanos fazem para pagar as contas? Além do mais, morando na Europa. Aí voltaríamos à hipótese do tráfico.

Felizmente eu não tive que responder a pergunta: de repente, da mesma maneira arbitrária com que os caras falaram que meu passaporte era falso, chegaram à conclusão de que era autêntico.

— Pode passar — falou o James Bond marroquino, visivelmente desapontado e sem pedir desculpas pela acusação.

Eu não estava para pedir desculpas, peguei o passaporte, os filhos e a Doutora e fui direto pra porta de embarque.

— Você sabe que a culpa é sua, né? — me disse a Doutora.

— Como assim, Doutora? — falei.

— Já falei que não gosto de ser chamada de Doutora, ainda não terminei o doutorado — me disse.

— Sei — falei, claro que sabia: eu tinha gasto oito das doze uvas dos desejos da virada pedindo pra ela terminar o doutorado de uma vez.

— Você usou seu nome para um personagem de ficção no seu novo romance e agora seu nome já não é seu — me disse. — Agora você é que ia virar um personagem de ficção. Fica brincando e fazendo gracinhas com essas coisas...

Porra, Zé, já são quase quatro e meia e tenho que buscar as crianças na escola! Eu ia te escrever era para comentar que Piglia morreu.

Que pena, Zé. Lembra daquela vez que a gente o ouviu na comemoração dos vinte e cinco anos da Companhia das Letras? Que cara mais lúcido, Zé. Contei pra você que achei uma frase nos diários dele que explica o que eu tentei fazer no meu novo romance? Não contei? Olha só: "Utilizar mi próprio nombre para señalar a un narrador ficticio es invertir el mecanismo del seudónimo".

A Doutora tem razão, Zé, os autores utilizam o pseudônimo para se proteger. Utilizar o nome verdadeiro numa ficção é desafiar a realidade. E a realidade, parece, não gosta de brincar: a realidade não entende o humor.

Descanse em paz nosso querido Piglia, Zé, escreve pronto, seu preguiçoso.

Beijos pra Janaína e abraços pra você.

* * * * *

Juan Pablo Villalobos nasceu em Guadalajara, México, e morou alguns anos no Brasil. É autor de Festa no covil, Se vivêssemos em um lugar normal e Te vendo um cachorropublicados pela Companhia das Letras e traduzidos em quinze países. Ele colabora para o blog com uma coluna mensal. 
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Juan Pablo Villalobos

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