Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Noemi Jaffe
Amós Oz por Piet van den Boog.
Como curar um fanático, livro recentemente reeditado de Amós Oz, tem um título bem-humorado, pois trata o fanatismo como se fosse uma doença passível de cura. Talvez não o seja, porque, na verdade, deve ser um tipo de patologia dessas irremediáveis.
Mas, se houver possibilidade de reversão, Amós Oz propõe, no mínimo, duas receitas: o humor e a curiosidade.
Sua ideia sobre como utilizá-los para curar fanáticos está no livro.
Gostaria de desenvolvê-las, aqui, sob o ponto de vista mais específico da literatura. Claro que nem ousaria chegar a seus pés, mas, ultimamente, nós brasileiros temos tido uma experiência de convivência com o fanatismo que nenhum de nós esperava ter. Então, talvez, esse ponto de vista também possa entrar no rol das prescrições curativas.
Em primeiro lugar, a curiosidade.
Para alguém ser escritor, ou mesmo um leitor, a curiosidade e o inconformismo são imprescindíveis. É preciso perguntar-se: "por que as coisas são ou não são assim?" e, também, "como elas seriam se assim não o fossem?". Ao tentar responder essas perguntas, o que o escritor faz é criar uma nova vida. Um novo objeto vivente: a história que se conta. Ela é ficcional, mas está viva e fala da e na vida, mesmo quando inverossímil, absurda ou surreal.
Em função dessa dinâmica, digamos assim, metabólica e sanguínea, os romances e contos são muito mais concretos do que abstratos, da mesma forma como a vida sensível o é. O leitor de um romance vive o medo, a dor, as preocupações, a dificuldade de pagar a conta de água, o preconceito, a dor de corno, a velhice e a coceira na orelha que sentem os personagens. Ele vê e ouve a paisagem, o confinamento da prisão, a mulher e o homem desejados, os ruídos do caminhão de gás na China, as montanhas andinas e a sujeira de uma rua no Paquistão. E é essa vivência vicária, a vivência da vida do outro, que faz com que o horizonte interno do leitor e do escritor se ampliem, com que ele, efetivamente, conheça concretamente a compaixão, a "co-pathos", a dor do outro, não de forma teórica, mas concreta e viva.
Ora, se concordarmos que o fanatismo é uma prática quase religiosa, derivada da incapacidade de reconhecer o outro ou a perspectiva de quem pensa diferente de si, a literatura seria, ainda que involuntariamente, uma forma, a partir da curiosidade, de "curar" essa obtusidade, esse estreitamento do olhar. Se sinto em minha pele a dor por que passa um negro nos Estados Unidos de década de 50 — se não sei "sobre" a dor, mas sei "a" dor —, tenho mais chance de compreendê-la e de ajudar a combatê-la.
Em segundo lugar, o humor.
Na Grécia Antiga, mais especificamente na Poética, de Aristóteles, a comédia é considerada um gênero inferior à tragédia. A segunda teria a função catártica, purgativa, de expulsar as paixões negativas dos espectadores, por meio do modelo punitivo. Quem desafia o destino é duramente punido. Portanto, aceite o que determinam os deuses. Já à comédia restava um papel de entretenimento, saudável, mas menos elevado.
Entretanto, pode-se também dizer, agora passados mais de dois mil anos, que a comédia tem, em certa medida, um lugar, digamos assim, mais "maduro" em relação à tragédia. É como se na comédia o texto e os personagens compreendessem que o destino de todos, irremediavelmente, é fatal: a morte. Estamos todos condenados ao mesmo pó indistinto e, por isso, podemos rir da solenidade e austeridade da vida e de suas determinações fixas. Abre-se um espaço relativista, uma brecha perspectivista, porque cai por terra a bandeira do absoluto, da totalidade que paira sobre nossas cabeças. É possível rir da vida e da morte.
Rir de si mesmo pode ser um remédio para o fanatismo também. O fanático, segundo Amóz Oz, não ri. Está "tomado" pela seriedade de sua causa. Como ele se leva a sério demais, acaba por não levar o outro em consideração, porque o outro existe somente para ser descartado.
Finalmente, se o fanatismo adota a ideia de que os fins justificam os meios, e se comporta nesse sentido, em que valem quaisquer práticas para justificar uma causa última, a literatura está convencida de que são, ao contrário, os meios que justificam os fins. Ou seja, é pela prática dos caminhos, daquilo que se constrói enquanto se está construindo, que se saberá, se é que se saberá, quais são os fins. O fim é determinado pelo itinerário que se toma, sempre aberto a novas possibilidades. Ou seja, o fim e o meio acabam sempre por coincidir, como na vida, como em cada momento.
Vá até a rua. Olhe cem metros à frente. Quem você vê? É um desconhecido? O que ele está fazendo, sentindo, pensando, desejando? Tente responder essas perguntas. Se ainda assim você considerar que sua "causa" é mais importante do que essas perguntas, parabéns, você está no caminho para se tornar um fanático. Mas, se você considerar que as respostas a essas questões valem mais do que mil totalidades absolutas, que uma cesta de legumes vale mais do que o socialismo ou o capitalismo juntos, parabéns também, talvez você esteja no caminho de escrever um romance.
Noemi Jaffe nasceu em São Paulo, em 1962. Doutora em literatura brasileira pela USP e crítica literária, é autora de A verdadeira história do alfabeto, vencedor do Prêmio Brasília de Literatura, O que os cegos estão sonhando? e Írisz: as orquídeas, lançado em 2015 pela Companhia das Letras.
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém