Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Tércia Montenegro
Roberto Bolaño, na segunda parte de 2666 – a parte de Amalfitano – põe seu personagem para pendurar um tratado de geometria num varal, reprisando o gesto de Duchamp, e explica que o tal ready made foi um “presente de casamento” que o artista deu à sua irmã e que consistia numas instruções “para pendurar um tratado de geometria na janela do seu apartamento e prendê-lo com um barbante, para que o vento pudesse folhear o livro, escolher os problemas, virar as páginas e arrancá-las”. Após citar um fragmento à página 238 da biografia escrita por Calvin Tomkins, ressalta Bolaño que este foi o único exemplo de ready made que Duchamp teria produzido durante sua estada em Buenos Aires – e complementa: “Se bem que sua vida inteira fosse um ready made, que é uma forma de apaziguar o destino e ao mesmo tempo enviar sinais de alarme.”
Já ouvimos exaustivamente falar em como a Fonte de Marcel tornou-se peça propulsora não só de inúmeras discussões sobre a natureza da arte, do pós-moderno e das tendências performáticas e conceituais. Mas agora, com essa ideia de a vida inteira de Duchamp ser um ready made (afirmação que não estou muito certa de haver compreendido), ponho-me a pensar em outros caminhos. Pois será que a mera atitude ousada (ou criativa), de desafio às convenções, pode ser tomada como atividade artística? E, dentro dessa perspectiva, a própria existência de um artista – supondo-se que, como tal, este indivíduo esteja mais ou menos num eixo de constante criatividade – seria um tipo de obra?
A arte enquanto vida parece ser o caminho natural de todos os que escolhem este ofício. Entregar-se a uma rotina até certo ponto errante – ou a uma antirrotina, na medida em que ela supõe muito mais sobressalto que certeza –, seguir os caprichos da intuição a ponto de transformá-la num método, sofrer com dúvidas que passam ao largo das preocupações comuns... tudo isso é parte do exercício estético. Para além do domínio de uma técnica, o artista é um inquieto e um angustiado; é o sujeito que está à margem, em situação paratópica, conforme definiu Maingueneau.
Mas outra coisa é entender a vida enquanto arte – ou seja, em última instância, compreender o próprio fato de estar vivo como uma interferência no mundo, um conjunto de performances ou intervenções sociais. Tal afirmação começou a ser discutida com força nos anos 1960, a partir do grupo Fluxus. Seus integrantes não por acaso foram influenciados pelo Dadaísmo e pelo citado Duchamp, tendo também sofrido o especial impacto das aulas de música experimental de John Cage: toda uma proposta de desconstrução – que inspira a ideia de que qualquer pessoa pode fazer arte – serve de base para estas experiências.
Óbvio que se pode polemizar sobre a aparente aleatoriedade ou sobre as “soluções gratuitas” nascidas a partir de então. A arte conceitual, por abolir uma execução física para seus projetos – por existir e se validar meramente no projeto, ideia ou conceito – atinge um extremo de dissolução. Movimentos, sons e literatura transitam, escorregadios: basta pegarmos, por exemplo, as instruções de Yoko Ono em “Uma peça para orquestra”, que integra a obra Grapefruit:
Conte todas as estrelas da noite
de memória.
A peça finaliza quando todos os membros
da orquestra terminam de contar estrelas,
ou quando amanhece.
Pode ser feito com janelas em vez
de estrelas.
Outras instruções de Yoko Ono – como “Grave o som de uma pedra envelhecendo” – mostravam que a arte não se contentava com o possível ou realizável, se é que algum dia o fez. A sua “Pintura para o vento” podia ser bem semelhante ao ready made do tratado de geometria no varal, embora a proposta fosse fazer um buraco numa sacola cheia de sementes e pendurá-la onde houvesse vento. Chegamos a um ponto drástico, em que parecemos simplesmente mergulhar no puro estado poético, das fabulações mentais. Há, inclusive, não somente certa memória de estranhamento literário presente nesta arte, como também se vê o lado contrário, da presença conceitual em alguns textos da literatura feita hoje (penso, por exemplo, em Matilde Campilho).
Entretanto a vida enquanto arte, em sua maioria, transcende a instrução, o texto, o suporte. Está sobretudo vazada em happenings, onde a apropriação do real se converte em obra. O detalhe é que, por mais que a realidade faça parte dos procedimentos de preparo e até ilusionismo que circundam estas experiências, não é qualquer extrato da vida que alcança status de arte.
Há que pensar no experimento como um tipo de ritual, algo específico ocorrendo com uma durabilidade e local pré-determinados. Lefebvre, com sua noção de “espace vécu” ligada aos espaços de representação através do uso simbólico de objetos, já sugeria que a vida – semiotizada, e somente desta forma – consegue alcançar uma categoria ficcional. Em Fortaleza, lembro os atos de um artista como Wellington Oliveira Jr. – com as atividades do Projeto Balbucio e, particularmente, com o ciclo “A Paideia de Tutunho”. Os acontecimentos biográficos viram alavancas de processos estéticos, mas o seu mérito se restringe a isso: ao trampolim, o disparo. O percurso da obra, ou o seu efeito, sempre circula em meio a surpresas.
Ao cabo de qualquer circunstância, o que importa mesmo é o rendimento interpretativo que damos a esse caminho. Retirando-se a arte da vida, resta somente um opaco percurso: afinal, do ventre ao verme, eis a rota que (como dizia Beauvoir) todos seguimos de maneira inevitável.
Tércia Montenegro é escritora e fotógrafa, autora do romance Turismo para cegos (Companhia das Letras, 2015).
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