Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Pôster de livros clássicos da Pop Chart Lab.
Um grande e ambicioso projeto do SESC, Arte da Palavra, me levou ao Mato Grosso do Sul na semana passada. A frustração foi não ter visto nenhum jacaré em Corumbá – apenas uma boca imensa putrefata e virada pra baixo, uma linha de pesca no pescoço, os indícios de algo que deve ter sido feito em uma dessas noites selvagens no rio Paraguai. Eu e o colega André Timm fomos a escolas e participamos de debates à noite. Como é comum em bate-papos, houve algum momento (ou vários) em que fomos indagados sobre as origens dos nossos hábitos de leitura. Essa é sempre uma questão que abre um portal para uma época já distante, lembrando inevitavelmente que as coisas mudaram e que minha experiência é um registro de uma época escassa e analógica.
Devo dar uma ideia, para a ala jovem, de que eles são sortudos por viverem no momento em que vivem. Embora eu venha de uma família com uma boa situação financeira e que sempre viu nos livros um alto valor simbólico, a escassez a que me refiro era a escassez de informação e de lugares para comprar livros. Tanto é que a Feira do Livro de Porto Alegre era “a" ocasião para que eu comesse pipoca com quadradinhos de queijo (uma coisa extinta, e eu não sei onde ficava aquele cara pelo resto do ano) e fizesse um pequeno estoque de leituras infantis e juvenis para muitos meses. Estou lembrando agora de um livro que mostrava as coisas por dentro: castelo medieval, transatlântico, avião, arranha-céu. Eu sempre procurava o banheiro. O banheiro era uma parte engraçada daqueles desenhos de grandes obras de engenharia seccionadas. Estou lembrando dos livros-jogos de uma coleção chamada Salve-se Quem Puder. Por essas e por outras, eu queria ser detetive.
O que eu sentia nessa época, e depois na adolescência, é que era difícil saber o que ler. Eu não podia contar com a indicação de irmãos – não tinha nenhum – e também não muito com as dos pais e avós – que me jogaram para a literatura policial e isso era o.k., mas o próximo passo deles seria, por certo, me oferecer Balzac e Victor Hugo, e eu achava que ainda não era a hora para isso. Os amigos mais próximos estavam em uma onda Neil Gaiman, que não era exatamente a minha praia. A escola foi legal comigo e me deu algumas dicas, mas o sentimento geral naqueles loucos anos noventa era que eu tinha que entrar na Livraria Sulina do Shopping Iguatemi e me atracar num livro totalmente por acaso, jogando todas as minhas fichas em uma aposta arriscada, tipo um livro noruguês contemporâneo com duas meninas nadando na capa.
Faltava uma curadoria. E é por isso que tendo a enxergar os jovens de hoje como mais sortudos. Curadoria é o que não falta. A internet é a recomendação por excelência, e isso inclui desde o amiguinho que você fez a 10.000 quilômetros de distância com gostos semelhantes aos seus até seus vlogs favoritos que dão dicas de livros, e que daí te levam a outro, e a outro, e a outro. Não só as dicas pululam como também a necessidade de abraçar listas e metas: toda a virada de ano, os usuários do Goodreads acham que serão pessoas melhores se dobrarem o número de romances devorados, e nem os que rigorosamente se opõem a essa transformação de leituras em coeficientes podem dizer que não sentem uma enorme satisfação ao marcarem um livro como “lido”; e depois há todas aquelas listas sobre livros “essenciais" do ano, deste século, do século passado etc., com curadorias diversas e que às vezes geram a necessidade/ansiedade da comparação.
E há listas que viram peças de design. Fetiche puro. Tipo esse pôster que eu comprei e que você deve raspar com uma moedinha os livros clássicos já lidos. Agora o que penso todo dia é: raspar ou não raspar? Estragar a harmonia? Prescindir do vidro? O pozinho dourado vai ficar preso à moldura?
Pensando bem, quem sabe tenhamos sido privilegiados em nossa escassez.
Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Seu último livro, Todos nós adorávamos caubóis, foi lançado em outubro de 2013. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.
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