Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Rubens Figueiredo

Um dos romances mais aclamados de todos os tempos, Anna Kariênina continua a causar espanto. Como pode uma obra de arte se parecer tanto com a vida? No posfácio à nova edição, assinado por Janet Malcolm, a escritora destaca sua característica fundadora: a habilidade de Tolstói em recriar um salão repleto de música, perfumes, rendas, numa galeria de personagens que, de tão vívidos, parecem se materializar diante do leitor. No texto a seguir, Rubens Figueiredo, que verteu para o português a obra de Tolstói, comenta como foi o processo de tradução de Anna Kariênina. Da preocupação com o rigor das palavras até a adaptação da fina ironia, ele lembra o momento em que se deparou, pela primeira vez, com a página que inaugura essa obra monumental e definitiva.
Por Alice Santanna
O relançamento da tradução de Anna Kariênina, agora pela Companhia das Letras, me fez lembrar, com curiosidade, a maneira como minha visão sobre o Tolstói foi se modificando à medida que a tradução do livro progredia. Eu não era um estudioso do autor e, no rigor das palavras, continuo não sendo. Porém, quando me pediram a tradução, me dei conta, meio assustado, de que tinha de ler e pesquisar, de forma bem objetiva – em função do tempo exíguo – pelo menos os dados mais relevantes sobre Tolstói. Quando chegou a hora de traduzir a primeira página, eu achava que tinha pelo menos certa noção do que me esperava. Só que a noção que eu tinha era, quase toda ela, apenas daquilo que alguns diziam sobre o autor.
Em vida, Tolstói foi objeto de polêmica, na Rússia e no estrangeiro. Objeto e também sujeito, pois a literatura russa, em seu veio principal, adquiriu força e alcance justamente mediante a polêmica. Não me refiro à polêmica de imprensa (bater três vezes na madeira) ou de salão ou de gabinete, esse esporte de elegantes. Pois, no caso em que Tolstói e outros estavam envolvidos, tratava-se de debates sobre as opções históricas concretas do país e do povo. A sério. Da mesma forma, nessa literatura, os sentimentos das pessoas eram tratados a sério. A fundo. Até o humor era a sério (vejam o Gógol). Assim como as opções de estrutura e de linguagem literária. Ou seja, a ironia, essa semideusa da esnobação, da inconsequência, não tinha trégua.
Até hoje, após quase cento e vinte anos, Tolstói continua excomungado pela igreja cristã ortodoxa. Não é pouco. Mas há quem prefira o prêmio Nobel. Quando peguei a primeira página de Tolstói para traduzir, ainda tinha, no fundo do crânio, algumas minhocas que ronronavam sobre literatura, universal, clássico, imortal, gênio – palavras que costumam ser enfileiradas, em várias ordens, para costurar uma bela isca, não menos enganosa, e no fundo não menos cruel, do que um comercial de tevê sobre empréstimos bancários.
Pois bem, digamos que comecei a traduzir Tolstói com minhas minhocas a postos – minhocas que não eram só minhas, a bem da verdade, nem estavam lá só por minha culpa. Mas ainda bem antes de acabar a tradução, antes mesmo de chegar ao fim da primeira parte do romance, eu já dava caça a todas elas, uma por uma. A literatura crítica sobre o autor de que eu dispunha, de início, e que estava mais à mão era (como sempre, infelizmente) a americana dominante. Nela, a história era abstraída, abduzida. O colonialismo, a burguesia, a expansão do capital quase desapareciam. Em seu lugar, a moral: o escritor moralista, o doutrinário. Ainda que os dados objetivos não batessem, a mesma tecla soava repetida, mil vezes. O escritor que sacrificava a arte à moral. Na minha frente, as páginas do romance iam seguindo, nas horas de descanso eu lia o romance Ressurreição, que Tolstói escreveu em 1899, e eu traduzia e, cada vez mais, pensava: onde, como assim, cadê, quem foi que disse? A igreja cristã ortodoxa não é a única que mantém Tolstói excomungado.
Quando eu estava no meio da tradução, tive meu único encontro pessoal com os dois principais e veteranos tradutores da literatura russa no Brasil. Muito rapidamente, expliquei a ambos o que eu estava notando no texto russo, nas palavras, quando lidas uma a uma: repetições a golpes de martelo, parágrafos e períodos longos, de arquitetura paralelística, uma retórica meio selvagem, mas rigorosamente racional, digressões dentro de digressões, paralelismos dentro de paralelismos, em proporções e abrangência desconcertantes, fora de todo padrão dos manuais de estilo e redação. Expliquei meu receio de que os editores, resenhistas e não sei mais quem fossem todos estranhar, questionar, recusar. Os dois, com suas sobrancelhas grisalhas, me olharam fundo nos olhos e insistiram: você tem de manter, tem de insistir, tem de brigar, não deixe passar nenhum, nenhum só.
Isso tem muito mais a ver com Tolstói.
Rubens Figueiredo nasceu no Rio de Janeiro em 1956. Formado em letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, é tradutor de autores como Dostoiévski e Philip Roth, entre outros, professor de português e tradução literária e um dos mais originais ficcionistas brasileiros contemporâneos. Em 1998 seu livro de contos As palavras secretas recebeu os prêmios Jabuti e Arthur Azevedo. É autor de, entre outros, Barco a seco (Prêmio Jabuti) e Passageiro do fim do dia.
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