Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Aline Leal
Foto: Yuri Vieira
O recente episódio da censura à exposição “Queermuseum – Cartografias da diferença na arte brasileira”, que tinha como objetivo valorizar a diversidade sexual através de temáticas LGBT, aponta para a relação tensa entre a “moralidade”, as artes e o mercado. Alocada no Santander Cultural, em Porto Alegre, a mostra foi encerrada após protestos de alguns grupos, notoriamente ligados ao MBL, que consideravam que havia ali incitação à pedofilia, à zoofilia e atentado à moral cristã. Frente a tais disputas, convém pensar: existirá um limite para a transgressão nas artes?
A ideia do “obsceno sim”, do “tudo dizer” nas artes, parece ser fundamental para se pensar a criação artística em um “Efstado livre” e a abordagem dos artistas de temas que nos frequentam histórica e, por que não dizer, existencialmente. Se a obscenidade está relacionada à exposição do que deveria permanecer à sombra, qual será o limite suportável desse “dar a ver”? Qual a fronteira entre o “obsceno sim” e o “repressor não”?
Na década de 1990, a escritora Hilda Hilst (1930-2004) – já famosa por aparições polêmicas, por entrevistas em que se apresentava sem papas na língua, refratária aos códigos e condutas reservados às mulheres de sua época, e cansada dos poucos leitores, que consideravam sua obra “hermética” – resolveu lançar uma trilogia erótica. “A santa levantou a saia”, disse ela na ocasião.
O primeiro livro: O caderno rosa de Lori Lamby. Nele, uma menina de oito anos narra suas aventuras sexuais, sustentadas à base de muita “lambeção” e o desejo por alguns bens materiais: mais especificamente a boneca da Xoxa, seu sonho de consumo. Narrado por uma criança, a carga sexual de que se vale é potencializada à perversão, à situação de crime, pedofilia.
Ora, embora os interditos em relação ao que choca em matéria de sexo e exposição tenham sido redefinidos contemporaneamente, derrubando alguns muros da “moralidade”, ultrapassar o limiar da criança e o da pedofilia certamente ainda deve chocar alguns leitores mais “liberais”.
No acervo de Hilda Hilst, que fica no Centro de Documentação Alexandre Eulálio, no IEL - Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, encontramos uma carta que ela recebera em reação à sua autoproclamada guinada profissional. J.B. Garcia, aparentemente alguém com quem HH esbarrara apenas uma vez na vida, sente-se impelido a aconselhá-la, ou melhor, desaconselhá-la, a essa história de pornografia:
“Li, estarrecido, em O Diário, desta cidade, que Hilda Hilst vai se dedicar agora a escrever pornografia. Tive que ler de novo. Mas estava ali, escrito e gritante. Então me contive até aqui para escrever-lhe sem outro calor que não seja o da cooperação e de um relacionamento tão bem começado. Escrever-lhe para um apelo sentido: não faça isso.”

Mas, ao que tudo indica, Hilda Hilst não só estava pouco se lixando para esse tipo de comentário, como era sua intenção provocá-los. E até mesmo se divertia com eles. Em entrevista a O Estado de S. Paulo (14 de junho de 1990), a propósito do lançamento de Lori Lamby, HH dispara: “Dizem que vou abalar meu prestígio, isso é hipocrisia. Rompem comigo mas continuam admirando Henry Miller, a Anaïs Nin, que escreveram também pornografia. Eles podem, autor brasileiro não pode. Isso é provincianismo”.
Assim, ao que parece, a trilogia sobrevém como ato político, além de literário, bramindo sobre a transformação da arte em mercadoria e sobre o colonialismo reinante na crítica literária e no mercado editorial brasileiro. Nesta mesma entrevista, Hilst diz: “O fato é que no Brasil escritor vale menos que um gato morto. Os editores querem é um escritor mediano, se não idiota”.
Em Contos d’escárnio, Textos grotescos, temos a famosa frase: “Resolvi escrever este livro porque ao longo da minha vida tenho lido tanto lixo que resolvi escrever o meu. [...] É tanta bestagem em letra de forma que pensei, por que não posso escrever a minha?”. E em Cartas de um sedutor, na seção “De outros ocos”, Karl apresenta a Stamatius a receita do escritor para o bom relacionamento com o editor e o público: “O negócio é inventar escroteria, tesudices, xotas na mão, os caras querem ler um troço que os faça esquecer que são mortais e estrume”.
A trilogia mais tarde consolida-se como tetralogia, com a incorporação do livro de poemas Bufólicas (1992), incluído em Da poesia. Publicado originalmente por Massao Ohno, seu editor mais entusiasta, com ilustrações nada comportadas de Jaguar, encontramos neste livro o famoso poema “A fadinha lésbica”, gorda e miúda e de “cona peluda”. A lésbica fadinha se vestia de rapaz para enganar mocinhas ou ressecadas velhinhas. Moral da história: “Não acredite em fadinhas/ muito menos com cacete. / ou somem feito andorinha/ ou te deixam cacoete”. Como vemos, Hilda Hilst não tem pudores em envolver o universo infantil com a mesma veia cômica, irônica e mordaz que perpassa grande parte de sua obra.

Chamada, à sua época, de puta, bruxa, louca, Hilda Hilst, em narrativas de questionamento da realidade e dos limites do eu, na exibição de parcelas do humano vedadas à circulação, lança-nos alguns vislumbres sobre o papel ético dos escritores frente aos muros e véus que nos restringem. Em entrevista para O Estado de S. Paulo (16 de março de 1980), ela diz: “O escritor é o que diz ‘Não’, ‘Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas’”. Assim, ela afirma o viés transgressor da literatura. E, se esta ideia pode parecer datada ou mesmo um lugar comum, alguns de seus pressupostos continuam ressoando contemporaneamente.
Aline Leal é doutora em Letras pela PUC-Rio, com a tese defendida “Sob o sol de Hilda Hilst e Georges Bataille". É organizadora e autora do livro Um olhar ecológico e Ecologia e sustentabilidade, da editora Uapê. É autora do livro de poemas Caroço, da 7Letras. Colaboradora da revista de artes visuais Dasartes.
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