Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Tércia Montenegro
Dentre tantas declarações da história da arte, uma das minhas preferidas é aquela que André Breton deixou no seu livro Nadja: “A beleza, ou será convulsiva, ou não será”. Esse princípio estético condensa o impacto – ou o espanto – imprescindível à condição surreal, mas também, numa escala maior, aponta para o mecanismo que ativa a essência do ato criador.
A convulsividade, em tal caso obviamente metafórico, tanto indica o simples ímpeto do imprevisto, da chama explosiva, do absurdo, quanto pode sugerir um desespero confuso. A realidade, de qualquer maneira, fixa limites e constâncias que podem passar uma ideia de segurança. Quando o surrealista se desvincula destes elementos, o lado sombrio – do desamparo que a liberdade proporciona – também entra em xeque.
Não por acaso, a vida de muitos artistas dessa época parece ter tido componentes trágicos: Frida Kahlo sofreu um acidente que iria marcá-la para sempre; Magritte e Dalí tiveram surtos de depressão; Leonora Carrigton envolveu-se em relacionamentos destrutivos; Giacometti enfrentou a solidão e o exílio, enquanto criava suas figuras anoréxicas; Dora Maar viveu a tortura de ser ao mesmo tempo artista e companheira de Picasso, situação que quase lhe custou a sanidade...
Mas a liberdade era o troféu máximo das vanguardas europeias do início do século XX – mesmo que isso significasse atravessar as fronteiras do desvario. Breton, no seu conhecido Manifesto do Surrealismo, ressaltava: “Não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio mastro”. Inclusive o repúdio à condição do louco era questionado: “Cada um sabe, com efeito, que os loucos só devem seu internamento a um pequeno número de atos legalmente repreensíveis, e que, na falta destes atos, sua liberdade (o que se vê de sua liberdade) não estaria em jogo. Que eles sejam, numa medida qualquer, vítimas de sua imaginação, estou pronto a concordar (...), mas o profundo desprendimento de que eles dão testemunho em relação à crítica que lhes fazemos, quiçá aos corretivos diversos que lhes são infligidos, permite supor que eles sentem um grande conforto na imaginação, que eles se comprazem bastante com seu delírio.”
O prazer de ultrapassar barreiras e criar era, voilà, a convulsão surrealista. Para explorar a psique em suas possibilidades mais extravagantes e autênticas, nada foi tão bom quanto o método da escrita automática. Lançar ao papel o que viesse à mente, sem permissão para a autocensura revisionista, significava não apenas produzir com flexibilidade. Significava produzir aquilo que o inconsciente do artista queria. A um só tempo, através desta técnica os surrealistas recusavam as pressões comerciais da arte, elevando o individualismo à potência mais alta, e também estabeleciam um curioso nexo com uma área do conhecimento que começava a se expandir: a psicanálise.
Os livros de Freud, especialmente A interpretação dos sonhos, tiveram um grande impacto na época. O princípio da “isenção da lógica” e do “acesso a uma realidade superior, maravilhosa” parecia garantido pela via do inconsciente. E Freud celebrava um tipo de automatismo pelas associações livres que o paciente podia elaborar, revelando à “atenção flutuante” do psicanalista o que o superego normalmente não lhe permitia admitir. Através de recalques, chistes, sonhos ou atos falhos, elementos do inconsciente emergiriam para a consciência.
A proximidade de interesses fez com que o Surrealismo se declarasse como uma espécie de voz artística da psicanálise, embora o criador desta última não quisesse reconhecer tal diálogo. Ao que consta, um dos mais escandalosos pintores da vanguarda, Salvador Dalí, tentou visitar Freud em Londres, em 1938 – mas o encontro não se revelou frutífero. O “pai da psicanálise” estava bastante debilitado pelo câncer que viria a matá-lo, e se medicava pesadamente. É de se crer, entretanto, que, ainda que Freud gozasse de plena saúde, não iria aceitar a espetacularização de sua teoria sob a irreverência daliniana...
De qualquer maneira, a ideia de uma conversa entre o criador da psicanálise e o mais icônico dos surrealistas inspirou o dramaturgo britânico Terry Johnson a escrever o texto Histeria. A comédia ganhou em 2016 adaptação brasileira no teatro Tuca, com tradução e direção de Jô Soares e os atores Cassio Scapin e Pedro Paulo Rangel nos papéis principais. O traço humorístico desta produção não causa estranheza: o próprio Freud havia demonstrado que a comicidade tem importante papel na economia psíquica – e, por outro lado, a vanguarda surreal alavancou o humor absurdo.
A escrita automática, por si, já lançava a possibilidade de gerar o non sense, situação em que palavras ou expressões não têm sentido ou significado, ou indicam condutas ou ações tolas. Enquanto possibilidade expressiva, o Teatro do Absurdo teve em Alfred Jarry o seu precursor, com a peça Ubu Rei, que estreou em 1896. Alfred Jarry chegou a criar um mundo às avessas — o mundo da Patofísica, que invertia conceitos da física e metafísica, rejeitando a realidade vigente. Até hoje, em sua homenagem, o Collège de Pataphysique, na França, declara-se como uma “sociedade dedicada a pesquisas sábias e inúteis” e tem como figuras de inspiração Boris Vian, Marcel Duchamp, Raymond Queneau e James Joyce, dentre outros.
Todo procedimento de absurdidade e fuga do real gera o riso, ainda que intencionalmente esse não seja o primeiro objetivo. Henri Bergson recorda que o que faz rir é uma situação inesperada, “um tipo de absurdo realizado de forma concreta”. Enquanto estética das “belas convulsões” e dos sonhos individuais, portanto, o Surrealismo pendula entre a denúncia anárquica de um tempo e a esperança que existe no humor e no fazer da arte. Por esses componentes, afirma-se como tendência válida para além de cercas cronológicas – razão pela qual ainda hoje encontramos quem, seja através do método criador, seja através da postura existencial, esteja filiado a uma tendência surreal.
Numa medida extensa, qualquer forma de ver o lado oculto das coisas (ou a ficção da representação) recupera o Surrealismo em suas reflexões fundadoras. Talvez esse movimento possa mesmo ser entendido para além de sua época, como uma estratégia – com inúmeras gradações – que o ser humano encontrou de salvar-se pelo deslocamento, escapando rumo ao inusitado.
Tércia Montenegro é escritora e fotógrafa, autora do romance Turismo para cegos (Companhia das Letras, 2015).
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém