Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Detalhe da capa de Uma forma de saudade.
2017 marca os 30 anos da morte e os 115 anos do nascimento de Carlos Drummond de Andrade. Nascido em Itabira, Minas Gerais, em 31 de outubro de 1902, Drummond é - e sempre será - um dos grandes nomes da poesia brasileira. Mas além dos poemas tão conhecidos pelos leitores, outros textos do autor continuam a aparecer. Entre eles estão as páginas de seus diários, até então inéditas e que agora estão reunidas em uma edição especial.
Segundo Pedro Augusto Graña Drummond, que organizou Uma forma de saudade, "estas páginas foram guardadas por CDA num envelope que confiou à sua filha Maria Julieta Drummond de Andrade, que as identificou com a seguinte inscrição: 'Diário de papai/ Família e amigos'". Aqui o leitor encontra as reflexões do poeta acerca de familiares e amigos próximos, como Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade, e muitas dessas reflexões envolvem a perda e a saudade de familiares e amigos que já se foram. Como Pedro Augusto comenta na introdução do livro, "uma possível conclusão desta leitura poderá ser a constatação de que Carlos exerceu e aliviou sua saudade escrevendo em prosa e verso".
Além das páginas do diário, o livro conta ainda com poemas inspirados nos acontecimentos narrados por Drummond, fotos do arquivo da família e fac-símiles das anotações do poeta, além de projeto gráfico especial, assinado por Raul Loureiro. Leia a seguir um trecho deste diário.
Uma forma de saudade chega às livrarias no dia 9 de novembro e está em pré-venda.
Desde 2012, a Companhia das Letras publica a obra completa de Carlos Drummond de Andrade, que já conta com 29 edições lançadas de poesia, crônicas e livros infantis. Confira no site todos os títulos já lançados na Coleção Drummond.
1954 - FEVEREIRO 11
Regressei ontem pela manhã de Itabira, aonde fora domingo passado, 7, para assistir à exumação dos ossos de Mamãe e à sua inumação junto aos ossos de Papai, em Belo Horizonte. Saindo de B. H. na madrugada de segunda-feira, com José e Ofélia, no carro que ele contratara, chegamos a Itabira a tempo de começar o trabalho de exumação pouco depois do meio-dia. Durou cerca de duas horas, e foi executado por dois coveiros, um dos quais antigo empregado do Retiro.
Sob o sol intenso, e na presença dos três filhos — Altivo, José e eu —, da nora, Ita, e de alguns netos — Virgílio, Heraldo, Ofélia —, pouco a pouco a terra foi sendo removida a golpes de escavadeira, enxada, picareta e pá, com cuidado e atenção necessária para que não se extraviassem ou estragassem quaisquer despojos humanos. Alguns fragmentos de caixão foram aparecendo, e depois o contorno dele e sua tampa, não completamente, mas envolto em terra. A parte mais clara era a da madeira, enquanto outra, roxa, denunciava o forro externo de pano. O primeiro osso a aparecer foi um maxilar, que nos pareceu não pertencer ao corpo de Mamãe, pelo fato de estar fora do caixão, mas pouco depois Ofélia conseguiu articulá-lo com a caixa craniana, que estava lá dentro, e que surgiu pesada de terra, nela se distinguindo apenas as cavidades das órbitas e o círculo da garganta. Com um pedaço de madeira Altivo e depois eu o esvaziamos do conteúdo terroso. Esses e os demais ossos que iam sendo retirados eram depositados sobre uma toalha que pertencera a Mamãe e que Ita trouxera. A empregada de Ita, Carola, apareceu com água e cachaça, esta última destinada aos coveiros. Não obstante a natural gravidade da cena, um elemento cômico estava presente nos ditos do coveiro Antônio, que a todo momento, e por uma velha mania, emprega o verbo controlar, e assim dissipava com sua ingênua rudeza a carga emotiva que pairava sobre nós e dentro de nós.
Os ossos foram recolhidos à urna de madeira envernizada, feita com esmero por Virgílio em sua oficina de marcenaria da Água Santa, e conduzidos à casa de Vivi, onde ficaram na sala de visitas. No dia seguinte, terça, pela manhã, a urna era colocada no porta-malas do Chevrolet que nos trouxera, e que nos reconduziu a Belo Horizonte. Aí ficou em casa de Altivo. Às 14 horas, levada para o Cemitério do Bonfim, onde também se encontravam Dodora, suas filhas, Mauro e Itinha, além dos três irmãos, de Ofélia, e de dois filhos de Favita, começou o trabalho simples de remoção da laje posterior do jazigo de Papai. Aberto o espaço reservado para esse fim, a urna lá foi colocada, e a abertura novamente obstruída. Cerca de uma hora depois estávamos de volta. Fui para o hotel descansar um pouco. À noite, passeio com Itinha e Ofélia, e conversa num bar. Avião na manhã do dia seguinte.
Impressão: o que estava ali, roído de vermes e sujo de terra, pouco tinha a ver com minha Mãe, separado já de seu espírito, que desaparecera. Cumpríamos um dever filial e piedoso, mas não havia motivo para sofrimento; tudo estava acabado e perfeito. E se o ato assumia alguma significação, antes de alegria, pela união final dos dois corpos, ou dos restos deles, a esposa indo encontrar-se com o esposo depois da involuntária separação. Era quase festivo e triunfante esse encontro dos ossos, vencendo o tempo e a morte.
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