Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Elitza L. Bachvarova

Quando se lê Guerra e paz pela primeira vez, abre-se uma página distinta na biografia de cada um de nós. Por isso, escrever uma crítica apropriada desse livro é um desafio quase impossível. O que não é difícil é expressar minha imensa gratidão por ter tido a sorte de vivenciar o poder da grande arte num encontro tão pessoal - o poder da palavra criativa de penetrar a alma e produzir uma tempestade de emoções e de pensamentos, de chocar, deleitar e iluminar.
A obra-prima de Tolstói nos fala de questões existenciais sobre a essência do homem, o significado da vida, do amor, da felicidade, da morte... É uma aventura e uma viagem por um mundo diferente, não apenas em termos de geografia e de tempo. Ela nos fornece, nas palavras de Turguêniev, uma representação fiel do caráter e do temperamento do povo russo (de uma era passada), “melhor do que se lêssemos centenas de obras de etnografia e de história”. O romance é catártico e transformador, provocando uma mudança em nossa percepção e compreensão do mundo. É uma jornada que exige que nos livremos de todos os clichês e das imagens produzidas pela miríade de versões cinematográficas do livro de Tolstói, para assim “descobrir o que só pode ser descoberto pela arte do romance” nas palavras perspicazes de Kundera. Isso requer, de modo especial, que nos abramos à polifonia da narrativa e à compreensão que Tolstói tem da “história” - a razão de ser desse livro. Foi o que o afastou de sua intenção original de escrever sobre os Dezembristas[1], para ir buscar as fontes da sua inspiração - seguindo o sábio conselho de Puchkin, de escrever com sinceridade sobre o que foi presenciado, “a guerra e a paz”[2]. Este é o princípio épico do romance, que liga os fios invisíveis da narrativa, formando um quadro único e monumental da vida.
Ninguém antes de L. N. Tolstói mostrou a guerra com tal realismo e poder artístico, negando qualquer interpretação romântica e vendo a guerra como a maior manifestação do mal, um fenômeno contrário à própria natureza do homem. “A guerra não é nenhuma cortesia, é a coisa mais vil do mundo”, reflete o príncipe Andrei Bolkónski na véspera da batalha de Borodinó, cujo número de mortes só seria superado pelas guerras do século XX.
O romance de Tolstói versa sobre o caráter fatídico dos conflitos sangrentos nas relações humanas. Explora as origens das guerras napoleônicas no Oriente (em 1805 e 1812) e seus resultados, focando nos seus impactos gerais sobre a vida do povo russo, mas também nos destinos individuais dos atingidos por esses eventos históricos. É sobre o que se perde e o que se descobre no calor da batalha. Ele mostra que, além das aldeias pilhadas, dos campos abandonados e embebidos de sangue humano, das chamas de Moscou, é o próprio mundo da Rússia anterior à guerra que desvanece. Com cada homem morto no campo de batalha, todo o seu inimitável mundo espiritual perece, milhares de fios são rompidos, os destinos de seus entes queridos implacavelmente mutilados...
Esta verdade da guerra - “no sangue, no sofrimento, na morte”, que Tolstói, ele mesmo ex-participante da guerra no Cáucaso e da defesa de Sebastopol, proclamou como princípio artístico nos seus contos de guerra - precisava ser humanizada, tornando-a compreensível. O escritor chegou cedo à conclusão de que “todo fato histórico deve ser explicado humanamente” e, para ele, isso significava retratar os eventos através do destino de seus personagens.
Assim, a guerra define o caráter dos protagonistas no romance – se impondo inexoravelmente em suas existências para marcar e moldar suas vidas, e servindo como teste decisivo da posição moral das pessoas. A família Rostóv é obrigada a deixar Moscou. Na guerra, o jovem Pétia Rostóv perece. Pierre Bezúkhov é capturado e tem de aprender a sobreviver e a compreender esse infortúnio. Natacha, que é marcada nas profundezas da alma pela morte de seu amado, fica horrorizada com a insensata destruição de vidas.
Ao mesmo tempo, a guerra também é uma prova da resistência do homem e da sua capacidade de descobrir o significado de sua existência, mesmo sob as condições mais adversas. O destino do príncipe Andrei Bolkonsky é o de traçar seu caminho, superando a ilusão da glória militar e terrena, para alcançar a reconciliação com a vida através da experiência do transcendente, no amor e na agonia.
Com seu talento incomparável, Tolstói pinta o íntimo entrelaçamento do homem e da paisagem, tanto a física como a emocional, muitas vezes contrastando a majestade da natureza com a loucura humana, com a mecânica da violência da guerra.
Revelar a verdade sobre a guerra é muito difícil, conclui Tolstói, e ele aborda o tema através de outro contraste - com a sua concepção de paz. A “guerra” não é apenas a ação militar dos exércitos em luta, mas também a animosidade e a desunião das pessoas em tempos de paz, separadas por barreiras sociais e morais, pela alienação e isolamento e pelo seu egoísmo. Igualmente, a “paz” aparece no romance se desdobrando nos seus vários significados. A paz nega a guerra porque sua essência está no trabalho e na felicidade, na manifestação livre e natural da personalidade. E esta concepção está subjacente ao próprio credo estético de Tolstói:
“O objetivo do artista não é o de resolver problemas, mas fazer com que o leitor ame a vida em suas inúmeras e inesgotáveis manifestações. Se me dissessem que eu poderia escrever um romance que, de uma vez por todas, oferecesse a solução incontestável para todas as questões sociais, não dedicaria nem duas horas a isso. Mas se me dissessem que o livro que eu escrevo seria lido pelos meus contemporâneos e que as crianças daqui a 20 anos ainda se emocionariam com ele e chorariam, ririam e amariam a vida, eu dedicaria toda a minha vida e toda a minha força a tal trabalho.”
Para os leitores brasileiros de hoje, é um privilégio poder compartilhar, através dessa excelente tradução, o mundo, as alegrias e as tristezas da obra prima de Tolstói.
A nova edição de Guerra e paz pela Companhia das Letras chega às livrarias no dia 21 de novembro.
Garanta o seu na pré-venda: [Amazon] [Cultura] [Livraria da Folha] [Livraria da Travessa] [Livrarias Curitiba] [Saraiva]
E-book: [Amazon] [Google Play] [iBooks] [Kobo]
Elitza L. Bachvarova nasceu em Sofia, Bulgária. Bacharelado em Antropologia, Mestrado em Sociologia, ambos pela Universidade de Chicago, EUA. Doutorado em História Comparada/UFRJ. Trabalha como pesquisadora, tradutora e professora. Atualmente ensina no Departamento de Letras Eslavas e Orientais/Faculdade de Letras/UFRJ.
[1] O interesse original de Tolstói na história da Rússia era focado no destino dos Dezembristas, oficiais nobres e veteranos das guerras napoleônicas que organizaram um levante abortado em 1825, três anos antes do nascimento do escritor. Eles esperavam provocar a reforma política da autocracia czarista, mas acabaram punidos com a execução ou o exílio na Sibéria. Em 1856, o czar Alexandre II deu anistia aos Dezembristas sobreviventes, como parte da liberalização da sociedade russa promovida por ele, após a desastrosa derrota na Guerra da Crimeia. Entre os anistiados estava o Príncipe Sergey Volkonsky, parente distante de Tolstói, que primeiro deu ao autor a ideia de escrever um romance sobre um Dezembrista envelhecido voltando para Moscou em 1850. Tolstói logo descobriu que precisava pesquisar e escrever sobre a experiência dos Dezembristas lutando pelo exército russo em 1812, para trazer vida à sua história, e isso, por sua vez, levou-o a 1805, quando a Rússia entrou pela primeira vez em guerra com Napoleão e perdeu. Tolstói acabou se concentrando nos eventos que levaram à invasão francesa de 1812 em suas consequências imediatas.
[2] A.S. Pushkin: “Boris Godunov”:
????????, ?? ????????? ??????,/??? ??, ???? ????????? ? ????? ??????/ ????? ? ???, ?????? ?????????,/ ????????? ?????? ??????.
Descreva, sem filosofar maliciosamente,/Tudo de que você testemunha será:/Guerra e paz, os governos dos soberanos,/Os santos que fizeram milagres.
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Rádio Companhia apresenta "As narradoras": minissérie em áudio sobre vozes literárias femininas do século XX
Como se preparar para a Conferência do Clima, que este ano acontece em Belém