Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Por Kelvin Falcão Klein

The Swing, de Jean-Honore Fragonard (1732-1806), que está na capa de Jogo de cena em Bolzano.
Giacomo Casanova (1725-1798), aventureiro e conquistador, é o tipo de personagem histórico tradicionalmente ligado à ação e às peripécias. Isso se deve sobretudo a sua espetacular fuga da prisão de Veneza, em 31 de outubro de 1756, e à publicação de suas movimentadas memórias em várias edições ao longo do século XIX. Sándor Márai constrói seu romance, Jogo de cena em Bolzano, de 1940, a partir do evento da fuga e da chegada de Casanova na cidade de Bolzano, norte da Itália.
Márai, contudo, quebra as expectativas mais convencionais. Seu Casanova em Bolzano pouco se mexe, e a ação do romance se dá quase que inteiramente dentro do quarto de uma hospedaria. Uma vez que o romance começa com a chegada de Casanova e termina com sua partida da cidade, isso permite a Márai concentrar a ação da narrativa mais nos gestos e palavras dos personagens do que em seus deslocamentos no tempo e no espaço.
Parte da literatura feita no período da fuga de Casanova é bem avessa a essa recusa do deslocamento, o que torna a quebra de expectativa de Márai ainda mais eficaz. Podemos partir de um exemplo dado pelo próprio Casanova no romance, Voltaire, a quem conhecia: duas de suas novelas, Zadig, de 1747, e Cândido, de 1759, são reconhecidas como tendo fartos toques de picaresco e tramas “rocambolescas”.
Nessa contenção do movimento, Jogo de cena em Bolzano evoca As brasas, o mais famoso romance de Márai, de 1942, sobre o reencontro em um castelo de dois amigos que não se veem há quarenta e um anos. Mas em Bolzano há uma riqueza especial de vozes, pois o Casanova de Márai tem um confronto verbal não apenas com um homem, o conde de Parma (como acontece em As brasas), mas também e sobretudo com uma mulher, a condessa, Francesca. Cinco anos antes, os dois homens duelaram por ela, e Casanova foi ferido no peito.
Esse triângulo é complementado pela convivência de Casanova com outros dois personagens no mesmo espaço: Balbi, o ex-monge com quem fugiu da prisão, e Teresa, funcionária da hospedaria que seduz no primeiro dia. O recurso dramático de Márai – o uso do quarto fechado como cenário para o “jogo de cena” – faz pensar na peça de Jean-Paul Sartre, Entre quatro paredes, que estreia em 1944 (contemporânea, portanto, dos livros de Márai). Tanto Márai quanto Sartre usam o quarto fechado para ressaltar essa capacidade do diálogo de não apenas evocar o passado e o futuro, mas também de manipular uma variedade de sentimentos em pouquíssimo tempo – da paixão ao desespero, passando pelo tédio e pela ironia.
Além disso, Jogo de cena em Bolzano é também uma sutil reflexão sobre a ficção e a literatura, sobre a potência da imaginação. O conde, por exemplo, passa páginas explicando a Casanova os sentidos possíveis de uma única linha de uma carta da condessa. Mais do que isso: o confronto entre o conde e Casanova gira em torno de um papel a ser representado, do “jogo de cena” que deve ser realizado no encontro com a condessa. No monólogo que forma um dos capítulos do romance, Casanova assim se refere à situação: “O conde de Parma calculou certo, avaliou-me e calculou todas as possibilidades, sabia que eu iria ficar e desempenhar meu papel teatral, que assumiria a representação, por mais perigosa que ela fosse, que a assumiria mesmo que meu pescoço venha a se romper e as belas senhoras de Bolzano entoem cantos fúnebres em três vozes sobre meu cadáver”.
Cada etapa do romance de Márai leva a uma nova quebra de expectativa, a uma renovação da surpresa, que começa com a imobilidade de Casanova e vai ganhando sutileza a cada novo confronto. Como pano de fundo, a constante preocupação com a linguagem, suas limitações diante dos sentimentos e sua conivência com os mal-entendidos ao longo do tempo. Nessa perspectiva, o romance de Márai pode ser lido em contato com a obra de outro húngaro, Imre Kertész, especialmente o breve romance Liquidação: um editor lê a última peça do amigo dramaturgo, que se suicidou; a vida coincide com o texto e o editor pauta suas ações pelo que lê na peça. Da mesma forma que o Casanova de Márai, preso em um jogo de espelhos que faz do personagem o autor da própria vida, constantemente atualizada a cada reescrita e releitura do passado.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Ed. Modelo de Nuvem, 2011). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.
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