Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"
Quando, no fim do ano passado, o conto Cat Person, da jovem Kristen Roupenian, começou a ser compartilhado nas redes sociais por pessoas que eu jamais imaginaria (não exatamente leitores de ficção), minha primeira reação foi de surpresa. O texto mais lido da New Yorker em 2017? Comecei a ler Cat Person. Minha segunda reação foi de surpresa e dúvida. O que havia no conto? Para mim, não muita coisa que justificasse todo o barulho que o público estava fazendo. Literariamente, era correto, mas um estilo assim sóbrio não era novidade, muitos outros já haviam tentado coisas parecidas com resultados bem mais interessantes. Em resumo, a escrita me parecia opaca e, em muitos momentos, enfadonha. Confesso que foi difícil chegar até a última linha.
Acho que demorei tanto a entender o fenômeno justamente porque me detive nos atributos literários do texto. Foi difícil admitir que isso importava menos para as pessoas, ou não importava e ponto: o que estava sendo discutido era o conteúdo, a relação estabelecida entre as duas personagens. E, nesse sentido, o conto não tinha sido alçado ao estrelato por ser exatamente original, mas sim o contrário disso; como afirmou Nancy Jo Sales, colunista da Vanity Fair, “basicamente qualquer um que já tenha usado um app de paquera poderia ter escrito Cat Person, talvez não tão bem”. E a ressalva do “não tão bem” parece importar bem menos do que o fato de Roupenian ter escrito sobre uma relação tipicamente insípida entre uma menina de vinte e poucos anos e um cara um pouquinho mais velho.
Uma versão mais sofisticada de um textão do Facebook. Acho que posso resumir o conto assim. Em termos de recepção, parecia claro que os mecanismos das redes sociais é que estavam operando: Robert era um abusador ou apenas um cara sem graça? Por que Margot fez o que fez? Quem era o errado da história toda, ele ou ela? Escolha seu lado, aqui não tem lugar pra gente em cima do muro. Esse era o tom das discussões.
Veja bem, não estou atacando textos literários que usam questões contemporâneas como temas. Isso, na verdade, é o que eu normalmente espero deles. O que me parece no mínimo redutor – e no máximo perigoso – é quando a literatura começa a ser lida apenas como veículo de exposição dos assuntos do momento, excluindo-se daí qualquer outro aspecto que torna um texto literário justamente um texto literário (isso inclui todas as questões estéticas, obviamente, mas também um certo tom de dúvida e de sugestão muito mais do que de certezas e ideologias marcadas).
Tais mudanças na recepção estão aí, jogadas na nossa cara. Mas e quanto às mudanças na produção? Se está claro que o mercado editorial e a mídia embarcam na onda de tomar uma obra não pelo todo, mas pelos “temas discutidos” – não foi sempre assim?, me dirão alguns –, mais misteriosas são as consequências disso tudo na vidinha do escritor. Vamos nos tornar todos escritores imediatistas, com pressa de escrever sobre o que já está em evidência nas redes sociais? Tremo só de pensar.
Outro dia, revi Sideways (2004), um belo filme de Alexander Payne baseado no romance de Rex Pickett. É uma história sobre vinhos, amizade e relações héteros. Tem como protagonista um cara branco meio deprimido. Haveria lugar para essa trama em 2018? Ganharia um Oscar (ganhou, na época, Melhor Roteiro Adaptado)? Certas histórias são simples e atemporais. Torço para que elas não deixem de ser escritas, lidas e – quem sabe? – comentadas no Facebook.
Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008 e, no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Todos nós adorávamos caubóis foi lançado em outubro de 2013 e, em 2017, publicou seu romance mais recente, O clube dos jardineiros de fumaça.
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