Mergulhar no tempo das cerejas, por Meritxell Hernando Marsal
Meritxell Hernando Marsal compartilha sobre os desafios do processo de tradução de "O tempo das cerejas"

Ilustração de Olga Bilenky
Leia antes: "A obscena senhora H" — parte 1
A juventude de Hilda em São Paulo foi estrondosa. Lançou seu primeiro livro de poemas com vinte anos, frequentava os melhores restaurantes, bares e livrarias — onde derramava uma personalidade brilhante entre os intelectuais e artistas paulistanos —, dava entrevistas e aparecia nas colunas sociais. Nessa época, namorou muito, não se prendeu a ninguém, e colecionou paixões que podem ser trilhadas na sua produção lírica. Desde o início, a vida e a obra de Hilda são indissociáveis, e, aos que se queixam de que seu trabalho é hermético, pode-se argumentar que não menos misterioso era seu jeito de estar no mundo. Numa entrevista em 1975, Hilda reclama:
"Há pessoas que falam: 'É preciso ter os pés na terra'; 'Os seus textos não têm os pés na terra', coisas assim. Mas o que significa isso de ter os pés na terra? Será que eles querem dizer que é necessário 'estar antenada' com a terra? Aí fico pensando que é melhor ter os pés na superfície esplêndida do cérebro, é estar atento à poesia que há em tudo e que nem sempre é claramente compreensível."
É, portanto, curioso que uma das queixas mais frequentes contra a obra de Hilda seja exatamente a de “ser difícil”. Se ela buscou comunicar por toda a vida — e comunicar significava uma comunhão com o inexplicável do mundo, com o inapreensível —, recebeu como resposta o silêncio da crítica, a ausência de público, e sua obra lhe parecia permanecer, ao longo dos anos, velada. A personagem que criou para si narrou à exaustão em entrevistas e conversas a história de que, aos 36 anos, a mulher exuberante, cansada da vida social, teve uma revelação ao ler o livro confessional Testamento para El Greco, de Nikos Kazantzákis. Na obra, o autor de Zorba, o grego e A última tentação de Cristo faz uma espécie de balanço místico da vida e afirma que a vivência plena da criação literária exige o afastamento do mundo, porque a literatura deve ser sagrada. É a partir dessa leitura fundadora que Hilda pede parte de um terreno da mãe localizado a poucos quilômetros de Campinas, numa área ainda extremamente rural, e lá ergue a Casa do Sol.
A construção impressionante que lembra um mosteiro — com um pátio interno cercado por corredores em arco e circundada por um jardim plantado pela autora na companhia de amigos e do então marido Dante Casarini — foi toda projetada por Hilda para o recolhimento do burburinho do mundo. É nesse lugar que ela cria seu templo literário de estudos e produção, casa aberta para abrigar amigos e escritores, espécie de utopia poética propícia à criação. A leitura de Kazantzákis inaugura também uma fase mística, própria, cheia de idiossincrasias, que modelaria seu pensamento a partir dali, e que seria a pedra fundamental da Casa do Sol.
É lá que surge a parte mais importante da produção de Hilda. É lá que ela cria suas personagens. É lá que, a partir de um único verso que surge “como uma iluminação”, ela desenrola todo um poema, todo um livro. É lá, num cotidiano surpreendentemente regrado — em meio à farra espiritual que os círculos similares ao de Hilda viviam na época —, que ela constrói sua rotina de trabalho, sua leitura todas as manhãs, o exercício da escrita, o humor entre os amigos. É lá que a ficção se faz presente, sua prosa estranha, inédita, rascante, sonora como seus poemas, indissociável deles. É lá, nessa casa térrea, que nasce, debaixo da escada, Hillé, protagonista de A obscena senhora D, sua personagem mais marcante.
Continue a leitura: "A obscena senhora H" — parte 3
Ana Lima Cecilio é formada em filosofia pela USP e trabalha no mercado editorial há quinze anos. Foi editora do selo Biblioteca Azul, no qual publicou autores como Balzac, Beckett, Elena Ferrante e Hilda Hilst, e foi uma das organizadoras das obras completas de Machado de Assis pela Nova Aguilar. Hoje é editora da Carambaia e prepara a biografia de Hilda para a Companhia das Letras.
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